Ícone do site Tribuna de Minas

Do silêncio como direito (e dever) de todos

PUBLICIDADE

Numa de minhas primeiras lições na Faculdade de Direito, li na Constituição Federal uma frase que nunca me saiu da memória: “A casa é o asilo inviolável do indivíduo”. O objetivo literal da norma é nos proteger contra o ingresso de pessoas estranhas e indesejadas no recinto onde temos nosso teto e nosso conforto, nossa família e nossas referências simbólicas, espaço de abrigo e de recolhimento, onde, livres das pressões sociais externas, podemos dar vazão à livre expressão de nossa personalidade.

É em casa, ainda, que desempenhamos atividades essenciais à renovação de nossa saúde física, psíquica e espiritual, tais como dormir, descansar, meditar, estudar, ler um livro, rezar. Tarefas que requerem um ambiente tranquilo, reservado e, tanto quanto possível, silencioso.

Estar em paz na nossa própria casa é um direito que assiste a todos nós. É um valor tão caro ao nosso ordenamento jurídico que o legislador pátrio cuidou de nos proteger não só da violação corpórea de nosso domicílio mas, também, da intromissão indevida de pessoas por meio de ruídos que extrapolem o uso normal do ambiente. A ninguém é devido adentrar a residência alheia pela via sonora, forçando o vizinho a ouvir suas conversas, sua música, o jogo de futebol ou o programa de TV que escolheu assistir, sob pena de responder cível e criminalmente pelos prejuízos causados. E engana-se quem supõe que, fora dos limites da famosa “lei do silêncio”, todo abuso seria permitido: a proteção contra a perturbação do sossego não se restringe a horários predeterminados nem a limites de decibéis, bastando apenas, para configuração da contravenção penal, que alguém, por meio de ação ou omissão, dolosa ou culposa, invada o espaço de privacidade alheio causando-lhe incômodo, desconforto e transtornos afins.

PUBLICIDADE

É necessário, contudo, associar esse vasto acervo de direitos aos usos e costumes de nossa cultura, a fim de interpretarmos a lei à luz da nossa realidade fática, sob pena de atribuirmos ao direito um caráter opressor que ele não tem. Nesse contexto, é natural que todos sejamos perturbados, em algum nível, por ruídos normais do dia a dia urbano: pelo tráfego de veículos, pelo ruído de eletrodomésticos, obras, choro de crianças, latidos de cães, entre outros. Trata-se de incômodos que, em limitada medida, somos obrigados a tolerar em razão de sua natureza inevitável: crianças choram, alarmes de carros podem disparar, cães eventualmente latem, e não existe reforma de imóvel sem quebra de materiais, atividade impossível de ser realizada de modo inaudível.

Muito diferente é a situação de uma música alta: qualquer que seja a ocasião, é possível e desejável que o alcance do som esteja circunscrito aos limites do ambiente que se quer sonorizar. Ninguém pode ser forçado a ouvir rock enquanto estuda para uma prova. A participar de uma festa de arromba quando está vestindo o pijama para ir dormir. A escutar, em todos os cômodos da própria casa, o grupo de pagode que se formou no botequim da esquina.

Mas bem, todo mundo tem o direito de dar festas, não? E de pular carnaval, de gritar gol, de cantar alto e se divertir. Como apurar, então, o delicado limite entre o exercício regular de um direito e o uso abusivo dessas mesmas garantias legais?

PUBLICIDADE

Penso que um parâmetro ideal de apreciação seria a avaliação sensata do binômio necessidade/evitabilidade do incômodo, aliado à periodicidade com que o evento sonoro é realizado e sua razoável duração. Quanto mais inevitável, esporádico e breve o barulho, mais justificada a poluição sonora, e maiores devem ser os nossos esforços para tolerá-la. Quanto mais evitável, frequente e prolongada a perturbação, menor é a nossa obrigação de suportá-la e mais legitimados estamos a utilizar todos os meios disponíveis para a restauração da ordem jurídica violada.

Penso, também – aliás, tenho certeza -, que toda ação humana baseada na solidariedade, na justa ponderação de interesses e no respeito aos direitos fundamentais do outro só poderá trazer, como consequência, a tão sonhada paz social. Que é a razão de ser do próprio Direito.

PUBLICIDADE
Sair da versão mobile