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‘Há uma ideia distorcida do ECA e do que diz a lei’

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Sociólogo e cientista político, Rudá Ricci construiu uma trajetória na militância de esquerda e também na academia, obtendo o título de doutor pela Unicamp em 2002. É diretor do Instituto Cultiva, com foco na educação para a cidadania. Convidado para a abertura da Conferência Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, realizada em Juiz de Fora no mês passado, o pesquisador concedeu uma entrevista exclusiva à Tribuna. Ao tratar sobre a redução da maioridade penal – que deve entrar na pauta da Câmara dos Deputados ainda este mês-, Ricci atribui a emergência da discussão a uma “irritação dos adultos” com os adolescentes, provocada por diferentes fatores. Além disso, critica a ineficiência da gestão e da formação dos conselheiros tutelares do Brasil.

 

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Tribuna – Em linhas gerais, qual é o lugar que a população infantojuvenil pobre ocupa na nossa sociedade?

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Rudá Ricci – Não é somente em nossa sociedade. Nós adultos, ao invés de uma tendência a formar e proteger nossas crianças e adolescentes, sempre achamos que elas são um estorvo. No Brasil, a situação é pior, porque somos um país profundamente desigual. Em primeiro lugar, a fome e a pobreza no Brasil atingem em maior grau às crianças, embora tenhamos reduzido pela metade a fome no país, segundo a ONU. Em segundo lugar, essa desigualdade se dá em termos sociais e culturais. Nós das regiões Sul e Sudeste do Brasil desqualificamos crianças negras e nordestinas. E eu temo muito pela garantia da tranquilidade de socialização de crianças adotadas por casais homoafetivos, que vão aumentar nos próximos anos: uma sociedade tão desigual, que não acolhe bem o ser humano, só acolhe aqueles do andar de cima. Além disso, o sistema de promoção e garantia dos direitos da criança e do adolescente, pensado em 1990 quando criamos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), não existe. Em cima dessa não existência, temos uma direita mentirosa, desleal que prega a redução da maioridade penal para jogar uma pá de cal naquilo que nem nasceu e vai morrer. É uma tristeza para quem lutou por uma sociedade mais humanitária falar o que estou falando, mas infelizmente é o que eu vejo.

 

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– Quase 90% da população brasileira se mostra favorável à redução da maioridade penal. Como o senhor vê essa questão?

– Os adultos no Brasil não gostam de crianças e muito menos de adolescentes. Sentem inveja da adolescência, se irritam com o celular, os batons, o jeito de falar, a vestimenta. O problema é que os adultos não educam mais os seus filhos. Temos pesquisas em profusão que demonstram que em cidades com mais de 100 mil habitantes, o tempo de convívio familiar dos pais com os filhos acima de 15 anos é de uma hora e meia por dia, contando a manhã e a noite, quando retornam à casa. E quando retornam, a qualidade é péssima, vendo televisão ou cada um no seu computador ou no celular. O que estamos percebendo não é só um fenômeno brasileiro, isto ocorre também na Europa. Portanto, os pré-adolescentes e adolescentes estão se formando entre pares, da mesma idade. São pessoas de tribos infantojuvenis, por abandono dos pais. É uma situação caótica porque os adultos se irritam com o estilo diferenciado dos adolescentes criado pelo abandono de apoio da família. É um círculo vicioso. E nesse caso, a sociedade dos adultos aumenta a ojeriza pelo estilo dos adolescentes. Evidentemente, é por isso que ao invés de falarmos que 99% dos atos violentos cometidos no Brasil serem de autoria de adultos, preferem dizer que estourou o crime porque 1% dos crimes são cometidos por adolescentes. É uma total ignorância de trocar 99% por 1%. E por que? Porque os adultos brasileiros odeiam os adolescentes, os maltratam e têm ódio da beleza, da capacidade de inovação, de tentar ser feliz, que os adultos não têm mais.

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– No caso da redução, o discurso do ódio está acima de uma discussão racionalizada sobre o tema?

– É claro que sim. Não é que não temos infrações cometidas por adolescentes. Mas é apenas um traço estatístico perto do que os adultos cometem. Grande parte dos atos violentos cometidos por adolescentes tem como suporte o tráfico feito por adultos, principalmente o crack. E a imprensa brasileira, principalmente a paulista e a carioca, ficam noticiando os atos de ataque de violência e bullying nas escolas. Como se isso não tivesse acontecido com cada um de nós. Não estou dizendo que bullying é uma coisa natural. Estou dizendo que nós adultos nunca resolvemos isso. E não é agora que piorou. Sempre foi assim na escola. O pior momento para quem é baixinho ou tem algum defeito físico é o recreio das escolas. Eu queria saber qual o projeto pedagógico do MEC ou de alguma secretaria de educação para o recreio? Nenhum. Queremos impor o IDEB [Índice de Desenvolvimento da Educação Básica] para enquadrar os adolescentes numa nota ruim. Queremos repetência para que eles sejam punidos. É uma sociedade da desfaçatez, violenta, muito agressiva, que quer a pena de morte. É uma sociedade despreparada, mal educada, principalmente do centro-sul do país que tem revelado um profundo racismo. É uma dor tremenda, depois de tantos anos de reconquista da democracia, perceber um retrocesso cultural.

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– E o que leva a sociedade a pensar dessa forma?

– Por incrível que pareça, isso vem dos últimos 10 anos, da inclusão pelo consumo, que fez dos adultos adolescentes, em termos de maturidade emocional, que querem comprar mesmo sem ter dinheiro. E tentar se revelar como cidadãos pelo consumo. Este tipo de sociedade que se inclui pelo consumo e não pelo direito, pela solidariedade ou pela política, é uma sociedade egocêntrica, que só pensa em si. E abandona obviamente o filho, está querendo viajar para a Europa, comprar uma casa que não pode ou um sítio que não pode. É uma sociedade doente, que acha que pessoas de baixa renda estarem num aeroporto para pegarem um avião, é transformar o aeroporto em rodoviária. É lógico que se até com adultos já há este escárnio, com adolescente, que tem menos poder, vai receber esta ira. Para piorar, nos últimos 10 anos, os Governo federal e vários governos estaduais e municipais se omitiram no debate sobre direitos. Então se junta uma sociedade do consumo, que odeia adolescentes, com uma sociedade em que o desejo, superego sem autocontrole é a chave do sucesso. Até na religião, o debate é esse hoje. Uma sociedade dessa é “adultescente”, são adultos que agem como adolescentes que eles querem punir.

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– Os conselhos tutelares têm função importante de zelar pelos direitos de crianças e adolescentes. Apesar de ter havido crescimento na implantação de conselhos em todo o país, o que se percebe é que eles estão precarizados em boa parte dos lugares. Como superar as deficiências de gestão e até de formação dos conselheiros?

– Temos mais ou menos 230 municípios brasileiros com déficit de conselhos tutelares. A maioria na região Sudeste. A região mais sanguínea no ataque aos direitos da criança e dos adolescentes é a região que menos tem conselhos tutelares. Primeiro, temos que cumprir a lei e, em segundo lugar, haver investimento público. Dinheiro para o FIA [Fundo da Infância e Adolescência], por exemplo. A terceira questão é que precisamos criar uma rede nacional de formação de lideranças sociais e conselheiros, que tenha pluralidade, com características locais e regionais observadas, mas com um eixo comum que é o Estatuto da Criança e do Adolescente. Quanto à formação, os conselheiros precisam saber cada ciclo da infância tem características psicológicas, emocional, física, de relacionamento social. Precisam saber a importância da comunidade e da família no desenvolvimento dessa criança, desse pré-adolescente. Precisa reconhecer fatores que levam ao desenvolvimento não esperado ou não desejado, ou ao trauma. Saber que marcas no corpo revelam torturas por parte de adultos. Saber o que fazer com abuso. Em segundo lugar, o conselheiro desenvolve política pública e precisa monitorar, fazer indicadores, medir resultados. E resultado não é a quantidade de apreensões ou de diligências. É um impacto na vida real das crianças e adolescentes de um município, como Juiz de Fora. Não é saber quantas vezes ele foi para a escola, é saber se não precisa mais ir para a escola. Em terceiro lugar, saber a legislação e em quarto, sobre como funciona o sistema. Como este ano vamos ter eleição unificada para conselho tutelar, estamos dando muitos cursos pelo país. Estou impressionado com a ignorância, não só de candidatos a conselheiros, mas também dos governos. Estou muito preocupado de como há uma ideia distorcida do ECA e do que a lei diz.

 

– Juiz de Fora vive hoje uma situação singular: os conselheiros tutelares que deveriam ter sido substituídos em 2013 estão até hoje no cargo, em função de um processo na justiça que alega vício na condução da escolha dos novos conselheiros. A situação é delicada, porque houve um esgarçamento da relação entre os representantes do conselho e o poder público. Além disso, muitos se desligaram dos cargos sem substituição de pessoal. Com um conselho enfraquecido e uma cidade sem uma política de proteção eficiente, o que vê é um prejuízo enorme na assistência a população infantojuvenil. Como colocar a criança no centro do debate público?

– É preciso de uma intervenção do Estado porque o Judiciário tem que ter prioridade, é uma prioridade máxima. está escrito na Constituição. O judiciário não pode demorar para tomar uma decisão sobre isso. Precisa ser prioridade máxima. Não tem muito o que discutir.

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