Seja no esporte ou em qualquer outra área, a conquista de objetivos e o sucesso chegam após trabalho árduo, força de vontade e suor escorrido. Cada capítulo da carreira dos principais atletas de Juiz de Fora é regularmente contado nas páginas do jornal ou on-line. Mas estas vitoriosas trajetórias, que nem sempre são tema de reportagens, não são percorridas sem o apoio de familiares e amigos, pilares de todo ser humano. Pensando nisto, a Tribuna inicia, neste domingo (23), uma série de minidocumentários chamada Tem Base!, produzida antes da pandemia, em que convidou personagens fundamentais na vida de grandes esportistas locais para contarem histórias, dificuldades e glórias das carreiras dos ídolos juiz-foranos e brasileiros, justamente sob a ótica de quem não apenas torce diariamente por eles, como presencia e participa de cada superação e chora e beija a medalha junto.
Para a estreia do Tem Base!, a carreira do lutador Felipe Silva é recordada por uma das pessoas mais importantes, tanto para a caminhada pessoal, quanto para a profissional do atleta de MMA. O irmão e um dos treinadores, Fabiano Silva, relembra alguns dos principais obstáculos superados pela família do Bairro Progresso, Zona Leste de Juiz de Fora, até Felipe se tornar o principal lutador da região, com assinaturas de contrato em duas das principais organizações do mundo na modalidade – o UFC e o Brave.
O início dos irmãos no esporte não teve relação alguma com o muay thai – especialidade da dupla. “Crescemos no Bairro Progresso e fizemos muitas amizades ali. Não moro mais lá. Gostava muito de bicicleta e comecei a praticar mountain bike. O Felipe, seis anos mais novo que eu, gostava de bicicross, fazia umas manobras e tudo. Nosso começo foi no ciclismo. Até participei de etapas Brasil afora, e ele levou por hobby. Depois, ele fez capoeira e taekwondo, ficou um tempo sem treinar e, então, conheceu o muay thai. Um belo dia, em uma daquelas coisas de irmãos, tivemos uma desavença em casa, eu fui bater nele e acabou que ele teve um diferencial. Fez uns bloqueios de canela, uma guardinha fechada, e achei interessante. No meio da briga, perguntei, brincando, o que ele estava arrumando. Ele tinha 15, 16 anos. E me falou do muay thai”, contextualiza Fabiano.
Paralelamente, porém, os irmãos passaram por um dos momentos mais tristes de suas vidas. “Nessa mesma época tivemos um caso na família. Minha mãe infelizmente teve um câncer. Ela era o carro chefe da casa e teve que parar de trabalhar – nesse período tomou alguns tombos, e acabou que tivemos que trabalhar cedo. Eu desde os 14, o Felipe mais tarde um pouquinho. As coisas foram apertando, a gente já praticando muay thai”, recorda Fabiano, que chegava a caminhar, algumas vezes, por seis quilômetros, apenas de ida, para conseguir treinar.
“Mas sempre fui determinado. Tive que parar o mountain bike e vender a bicicleta para ajudar em casa. Toda a minha renda do trabalho era para isso. Mas acho que tudo isso fez a gente dar mais valor à vida. Quando as coisas vêm fáceis, a gente não dá tanto valor. Sou muito grato a Deus por tudo o que ele nos proporcionou, porque foi uma fase de aprendizado e crescimento. E conseguimos sempre buscar, com determinação, as coisas que almejávamos”, agradece.
Dois irmãos, dois ciclos
Com o passar dos anos, Felipe virou o treinador de Fabiano na arte marcial. “Ele sempre me puxava para cima”, conta o irmão mais velho, que após 26 lutas deixou a carreira e inverteu as funções com o caçula. “Quando eu parei, tive a honra de poder retribuir tudo o que ele fez por mim. (…) Para ele não existe fim de semana, se abstém de ficar às vezes com a família para fazer um camping em Curitiba, onde tem um maior material humano. E conhecemos muita gente nesse tempo todo que só acrescentou para nós, como o Cristiano Marcelo, da CM System, e o Zulu, uma equipe fora do comum, preocupada com o dia a dia de cada atleta.”
Como lutador, Felipe Silva passou a ser conhecido por sua agressividade em pé e habilidade na trocação, sempre buscando nocautear os adversários desde os primeiros segundos de combate. O destaque no octógono pedia mais de Felipe, que tinha muito a mostrar.
“A gente sabe que o esporte é bem complicado no Brasil, não temos tanto incentivo. E o que paga melhor hoje é o MMA. Eu já estava parando por algumas lesões, e sentei com o Felipe para conversar sobre essa transição, por voos maiores. Começamos a nos especializar em jiu-jítsu e, graças a Deus, foi dando tudo certo. Ele fez oito lutas no Brasil e nocauteou em todas, mostrando o striker que era, sem abandonar suas origens”, relembra Fabiano.
Sonhos realizados: UFC e Brave
Surgiu, então, uma oportunidade de atuar no evento Explosion MMA, no Paraguai, em 2015, diante do anfitrião Carlos Irigoitia. “O Felipe foi campeão finalizando a luta no primeiro round. Vimos, ali, que ele tinha um talento nato para o MMA. Conseguiu um empresário, que arrumou uma luta para ele na Finlândia, contra o número 1 de lá, queridinho do evento (Anton Kuivanen, no Cage 35, em maio de 2016). [O Felipe] conseguiu nocautear no primeiro round também. Aí todas as pessoas envolvidas no meio ficaram impressionadas. Até então, o Felipe não era ninguém conhecido. Através dessa luta ele conseguiu ir para o maior evento que tinha na época, o UFC”, recorda.
“O primeiro a saber que ele tinha fechado com o UFC fui eu, porque ele estava num sítio que não pegava telefone. O Zulu me ligou desesperado, eufórico, atrás do Felipe, que tinha uma cirurgia marcada pra semana seguinte. Consegui falar com a esposa do Felipe, a Camila, que está sempre dando um suporte fora do comum também para ele, e ela, emocionada, chorando, enquanto ele pedia para parar de brincadeira, sem acreditar”, lembra, com um sorriso no rosto.
Felipe não fez a cirurgia e, além das dores, também superou o adversário, o canadense Shane Campbell, em agosto de 2016, na casa do oponente e com nocaute no primeiro round. “Foi uma emoção fora do comum. Somos de uma família humilde, crescemos porque gostávamos do esporte e não tínhamos a noção de onde chegaríamos, mas sabemos que todo sacrifício é recompensado. A ficha só caiu quando acabou a luta. Na hora de assinar o contrato foi legal e tudo, mas quando ele acabou, sentamos para comer, e, do nada, parei e pensei: ‘Estamos no maior evento do mundo, onde todo mundo quer chegar. Olha de onde a gente saiu e onde chegou’. Foi incrível. Depois ele teve os dois revezes, e acabou que deixaram ele na geladeira, mais de um ano sem lutar. Aí veio a proposta do Brave.”
Pela ascendente organização Brave Combat Federation, com a qual Felipe fechou contrato em 2019, foram duas lutas, com uma vitória e uma derrota. ” O Brave queria dar um novo significado a ele. Uma proposta muito boa. Acabou fechando um contrato de três lutas e, pra mim, particularmente, depois de tudo o que ele passou, as duas derrotas, a esposa grávida, o filho nascendo, foi um recomeço. Fiquei maravilhado pela estrutura do evento, muito feliz, porque dá valor ao atleta. Vi ele novamente com um propósito novo. Em momento nenhum se acomodou, sempre está treinando, mas acompanhar ele ali foi muito emocionante, ver que ainda tem muito cartucho para queimar e que vai muito longe.”
Gratidão, família e esporte
Olhando para trás e recapitulando cada percalço e alegria vivida pela dupla, Fabiano não tem dúvidas do que sente. “Gratidão a Deus, por saber de onde saímos e onde chegamos. É um reconhecimento de toda uma vida, um trabalho, de você se abdicar de tanta coisa, mas acreditar que aquilo tem um porquê. Temos nossa academia, e nela eu vejo como o esporte em si é maravilhoso. O esporte muda vidas. Temos relatos de tantas pessoas que começaram com o intuito de só querer treinar, e hoje já conseguimos formar campeões.”
Certamente, assim como você que lê, Felipe não seria o mesmo sem sua família, representada na entrevista por Fabiano, e pessoas próximas. “Por questão da diferença de idade ser grande, houve uma época em que o ciclo de amizades era diferente. Não éramos tão próximos, a não ser dentro de casa. E o esporte nos proporcionou isso. O Felipe tinha a academia dele, eu a minha, mas sempre treinamos juntos. E há sete anos atrás tivemos a possibilidade de montar uma estrutura só nossa, trabalhar juntos, o que nos aproximou muito. No fim de semana queremos estar juntos, ainda mais agora com o filho dele, um moleque maravilhoso. Sou um tio babão! Mas na vida, o que a gente faz fica de legado. E por ele ser mais novo, acho que viu minha correria e isso acabou ajudando. Mas não acho que sou um incentivador. Os méritos são dele. Ele poderia ter todas as desculpas para desistir no meio do caminho, fazer o que for. Mas foi a força de vontade dele, de ser melhor no que acreditava. É muito determinado. Ninguém chega em lugar nenhum sozinho, mas os méritos são dele.”
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As histórias dos irmãos ficam na memória. E o caráter engrandece e serve de exemplo para todos. “Teve uma vez que eu e o Felipe fomos lutar em Belo Horizonte e passávamos um sufoco muito grande. Chegamos a dormir em academia porque não tínhamos dinheiro pra pagar o hotel. Era tudo contado porque eu estava trabalhando, pegava às vezes R$ 50 pra comer no fim de semana, eu e ele. O começo não foi fácil, mas todo sacrifício é bem recompensado e hoje podemos viver dos méritos do passado e muitos, por meio da nossa história de vida, vão conseguir sonhar e chegar mais alto também”, relata Fabiano.