Escrevendo verdades


Por Júlia Pessôa e Mauro Morais, repórteres

28/08/2015 às 07h00- Atualizada 31/08/2015 às 08h15

Por ser intersexual, como aluna, Júlia Oliveira sofreu preconceito, hoje  superado como professora de canto no Conservatório Estadual, em Juiz de Fora (Leonardo Costa)
Por ser intersexual, como aluna, Júlia Oliveira sofreu preconceito, hoje superado como professora de canto no Conservatório Estadual, em Juiz de Fora (Leonardo Costa)

seloNa primeira vez em que entrou em uma sala de aula, usava um macacão jeans largo, que lhe omitia o corpo e mantinha os longos cabelos loiros amarrados enquanto ensinava música para crianças e adolescentes. “Minha primeira classe no conservatório foi como homem. Sofri tanto constrangimento em outros ambientes profissionais que preferi omitir minha identidade para me resguardar”, diz a professora Júlia Oliveira, que em sua estreia no ensino de canto já vivia como mulher, “postura” que assumiu cerca de três ou quatro anos antes de passar pelo processo transexualizador em 2005. “Não costumo usar o termo transição, porque meu caso é diferente”, ensina ela, que integra a sigla LGBTI em sua última letra, representando as pessoas intersexuais (que nascem com genitália ambígua, antigamente chamadas de hermafroditas).

Como aluno e como professora, Júlia amargou, dos recreios às salas dos professores, o despreparo do ambiente escolar para lidar com a diversidade sexual e de gênero. “Desde cedo, a escola separa meninos e meninas, masculino e feminino, e atribui tratamentos e ensinos distintos aos gêneros, fazendo quem não se enquadra nesta divisão restritiva se sentir um erro. Procuro não reforçar estes estereótipos com os estudantes”, pontua ela, retrato de um país em que 87% da comunidade escolar da rede pública brasileira – sejam alunos, pais, professores ou servidores – admitem ter algum grau de preconceito contra a diversidade sexual e de gênero. O levantamento foi realizado com base em entrevistas feitas com 18.500 pessoas de 501 unidades de ensino de todo o Brasil por pesquisadores da Fundação Perseu Abramo- Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA-USP).

Debate dentro e fora da escola

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A professora Luiza Coppieters foi demitida de uma escola particular de SP após tornar pública sua transexualidade (Foto: Reprodução/Facebook)

Em outra sala de aula, na Grande São Paulo (SP), o professor de filosofia Luizão, “um ogro”, como se definia, ia contra a maré de conformidade e silenciamento. “Meus alunos tiveram uma formação que discutiu gênero, porque eu banquei este debate. O assunto é tabu para as famílias, por isso não é abordado em casa, e a escola não tem liberdade para tratar, porque, ironicamente, precisa respeitar os valores da família”, argumenta, destacando que a situação é ainda mais grave nas instituições particulares. “A escola particular preza pelos interesses de seus consumidores, os pais de alunos. Então, se um tema desagrada, o medo de perder matrículas acaba com sua abordagem. Na escola pública, esse controle externo não existe”, analisa, confirmando relatos coletados com professores das redes municipal e particular de Juiz de Fora.

Em uma turma, quando disse que “tio Luiz era, na verdade, tia Luiza”, a hoje professora de filosofia teve aceitação integral dos estudantes. O sinal para que ela deixasse a classe tocou pouco depois que ela se assumiu como transexual algo que, para ela, também é sintomático da falha da escola em abordar e lidar com temáticas LGBTI. “É fruto de uma escola que continua formando concurseiros desde o período da ditadura. Este modelo de ensino formou as pessoas que me demitiram. Temo pelo futuro do país se não houver uma reformulação completa do ensino. Vamos continuar omitindo as guerras diárias e as pessoas que estão sendo mortas porque outras são incapazes de compreender a diversidade sexual e de gênero.”

Ainda que o panorama não favoreça um debate leal sobre gênero em salas de aula, avanços pontuais são percebidos, como a indicação de leitura do autor Caio Fernando Abreu, reconhecido como um dos principais nomes da literatura brasileira a trazer personagens gays para o protagonismo de sua escrita, no vestibular e no Pism da UFJF no início dos anos 2000. Mesmo possibilitando leituras que não necessariamente se relacionem ao debate das sexualidades, a simples indicação abre espaço para que o tema surja nas escolas. “Se a escola não se encarrega da discussão sobre gênero e sexualidade, alguém o fará. E normalmente isso será feito por meios repressivos, permeados de preconceito e dominação, como a pornografia e, em outro extremo, a religião”, comenta Luiza.

60% dos professores sem preparo

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Professor transexual Daniel Camargo em sala de aula (Foto: Amanda Nuds/acervoo pessoal)

Depois do intervalo entre a última aula que lecionou como professora da rede estadual de Bauru (SP) e a primeira vez em que entrou em uma turma como Daniel Camargo, o docente de língua portuguesa foi abraçado pela comunidade escolar e tornou-se referência para o debate de gênero. “Meus alunos e alunas e seus familiares acompanham minha transição, comemoram comigo minhas conquistas, como a recente retificação de meu nome e gênero na certidão.”

Apesar de boas experiências como a de Daniel, pesquisa da Fundação Perseu Abramo revela que 60% dos professores da rede pública não estão preparados para lidar com a diversidade sexual. O mesmo estudo revela que 27% de homossexuais, bissexuais e transgêneros afirmam terem sofrido preconceito nas instituições de ensino, e 13% deles apontam as carteiras e quadros de giz como o primeiro cenário em que viveram discriminação.

Para Daniel, a formação sobre gênero e diversidade sexual nas escolas é imprescindível, já que o Brasil “tem a maioria da população autodeclarada cristã e, contraditoriamente, lidera o ranking de crimes contra pessoas LGBT”, portanto, não consegue compreender quem passa por vivências como a dele. “Na infância, tive depressão e sentia-me completamente deslocado no colégio. Passei uma vida evitando espelhos e a dor de ser chamado por meu nome de registro. Hoje sou um educador e uma pessoa mais feliz, mais amorosa. Além disso, ser transexual e estar mais à margem da sociedade me mostrou muito sobre como precisamos ser mais humanos, ouvir mais, respeitar mais o outro e, sobretudo, amá-lo”, diz ele. Antes que soe o sino da saída e as carteiras se esvaziem, Daniel dá a lição mais simples, mas aparentemente tão difícil de ser ensinada nos espaços que deveriam prover conhecimento. “Sonho com o dia em que as pessoas serão valorizadas pelo seu caráter, nada mais.”

 

“Sem ele, sem ela”

Impressões dos repórteres

No meio da frase, o gênero mudou. Do texto e do entrevistadx. Repentinamente, não havia artigo “o” ou “a”. No texto e na vida daqueles que estavam diante de nós. Na rua, na frente de escolas públicas ou particulares, restavam, apenas, depoimentos de profunda dor, açoitadxs, ainda mais, por gestos discriminatórios que não se inibiam em ver uma câmera e um gravador ligados. Restavam, também, olhares otimistas para vivências que, aos poucos, encontram o conforto dos corpos.
No papel, histórias que não mereciam ser vítimas das divisões que tantas vezes lhes atormentaram. No espaço acostumado a sempre encarar “ele” e “ela”, torna-se urgente refletir sobre os manuais. As vidas de hoje já não são representadas pelas normas. O padrão está fora do padrão. Se a regra provoca tanto sofrimento e exclusão, ela pode ser vigente? Como diz Gabriel García Marquez, “o jornalismo é uma paixão insaciável que só se pode digerir e humanizar mediante a confrontação descarnada com a realidade.”
Demos voz a relegadxs ao silêncio e à invisibilidade. Desafiamos a conformidade na generalização dos artigos e na necessidade de classificar as pessoas, e as incluem em um “todo” que mais exclui do que representa. Comovemo-nos diante da consciência de nossxs entrevistadxs de que sofreriam retaliação pelo mero fato de existirem, mas também com a sua implacabilidade em dizer “estou aqui”, apesar do quanto essa condição lhes é negada.
Aprendemos com quem, ironicamente, a legitimidade de toda uma vida é suprimida. Enquanto houver prensas, pixels e megabytes, há esperança de que o jornalismo conte menos histórias com “eles” e “elas”, e mais relatos de “nós”.

 

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