A regulamentação dos serviços de vídeo sob demanda (Vod) é pauta que circula há tempos. Com o retorno do Ministério da Cultura (MinC), a atenção a ela ficou ainda maior, sendo encabeçada e debatida, principalmente, a partir da Secretaria do Audiovisual (SaV). Na Mostra de Cinema de Tiradentes, que aconteceu em janeiro deste ano, Joelma Gonzaga, secretária da pasta, afirmou que a regulamentação sairia ainda neste ano. No entanto, a atual perspectiva é de que os projetos de lei, que tramitam na Câmara e no Senado, voltem a ser discutidos só no ano que vem, em razão do período eleitoral.
Nesta edição da Mostra de Cinema de Ouro Preto, CineOP, em que o tema da preservação foi o mote de diversos debates, uma das mesas debateu, exatamente, a importância da regulamentação do VoD, sobretudo no que diz respeito à preservação audiovisual, que permitiria, entre outras coisas, o acesso inclusivo e diversificado a conteúdos digitais. Na ocasião, Paulo Alcoforado, diretor da Ancine, Daniel Jaber, diretor da Cardume e representante do Fórum dos Streamings Independentes, Tatiana Carvalho Costa, presidente da Associação de Profissionais Negros (Apan) e Vitor Graize, tesoureiro da Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA), salientaram que, apesar de ser importante que o VoD seja regulamentado, as leis ainda apresentam diversas falhas.
Como diretor da Ancine, Paulo consegue apresentar a situação a partir de uma visão mais sistemática, de dentro, da importância da regulamentação. A produção audiovisual, de acordo com ele, está em quinto lugar na contribuição do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. É por isso que ele afirma que regulamentar é, também, organizar o mercado e fazer com que mais pessoas sejam beneficiadas pelas políticas públicas existentes no meio e, ainda, que mais pessoas tenham acesso ao que é produzido no Brasil.
“A regulamentação do VoD não significa só ampliar o mercado de licenças. É um impacto muito maior que implica a organização de todo o ambiente audiovisual brasileiro. É um mercado a ser muito disputado. São empresas brasileiras e estrangeiras que podem explorá-lo”, salientou. Quando se tem o audiovisual regulado, existem regras a serem seguidas tanto por empresas brasileiras quanto estrangeiras, de forma a garantir que o país ganhe também com essa exploração.
O cenário atual mostra essa necessidade, sobretudo quando se pensa em quem produz cinema hoje em dia. Dados da Ancine dão conta de que, entre 1970 e 2016, do conjunto de filmes com mais de 500 mil espectadores na sala de cinema, 10% deles foram dirigidos por mulheres brancas e 0% por pessoas negras. Já do financiamento público, dos últimos 20 anos, menos de 5% do fomento para produção foi direcionado a pessoas negras. Em 2018, 100% dos filmes realizados com verba pública via Ancine foram liderados por pessoas negras.
“Quem tem direito à memória?”
“A gente chega à conclusão de que tem política pública que opera exclusão. Quem, então, tem direito à memória?”, questionou Tatiana. No que diz respeito à preservação, inclusive, a presidente da Apan lembra que é a partir da regulamentação do VoD que se pensa em políticas públicas que vão além do que é comercial e conhecido do público. “A regulação do VoD tem a ver com isso porque parte do dinheiro do Fundo Setorial Audiovisual vai para o fomento em um sentido reembolsável. O governo é sócio da sua obra e você tem que devolver lucro líquido para o próprio fundo”, explica. E segue: “É importante pensar a importância da construção de memória, da preservação e da difusão das obras preservadas e digitalizadas para o fortalecimento da democracia”.
A mesa apontou alguns problemas que os projetos de lei apresentam. Existem consensos, principalmente, quanto à necessidade da regulamentação. Por outro lado, uma das principais questões é a definição do que é, de fato, uma produção brasileira. “Para a presença de conteúdo supostamente brasileiro nos catálogos, não tem os critérios fixados em lei que diz que a empresa tem que ser constituída sob as leis brasileiras. A partir do momento em que se flexibiliza a ponto de o produto de uma empresa estrangeira que contrate o serviço de uma produtora brasileira ser considerado produto brasileiro, há uma distorção que captura o mercado que deveria ser para a ampliação do mercado de licenças”, pontuou Paulo.
“A gente precisa defender o que é uma produção brasileira realmente. E essa é uma chave primordial para nós e para quem tem a ver com preservação e soberania nacional, que é o direito patrimonial. É a produção independente que garante que a gente tenha o direito de comercialização das nossas obras e, mais que isso, comercialização a longo prazo. A leis, no entanto, são construídas contra isso”, completou Tatiana. Um outro problema encontrado é a cota de produção brasileira nos catálogos. “As cotas que são fixadas para conteúdo brasileiro são menores que os percentuais já cumpridos pelas empresas hoje. Qual o sentido de um regulação não resultar em uma ampliação significativa de um mercado de licenças?”, questionou Paulo que, em seguida, afirmou que, apesar disso, é preciso regulamentar.
Um caminho possível para o VoD
Como representante do Fórum dos Streamings Independentes, Daniel apontou outro caminho: um possível e que serve de exemplo para as grandes empresas. Quinze empresas participam do fórum, o que representa 20% das plataformas brasileiras. 90% do conteúdo delas é nacional, 30% são produções independentes e 40% já investem na produção nacional. “A gente trabalha com filmes que, muitas vezes, não estão em nenhum outro lugar. São produções de pessoas indígenas e periféricas, por exemplo. E são filmes de extrema importância para a cultura brasileira. As plataformas independentes absorvem esse tipo de conteúdo”, justificou.
Em uma pesquisa já realizada por eles, foi identificado que o Brasil produzia 800 curtas por mês. Mas onde estão esses filmes? É por isso que regulamentar é também abrir mais espaços para pessoas que produzem de forma independente. “Esse é um excelente ecossistema para a preservação do patrimônio. Mas, para que a regulamentação seja eficaz, a gente precisa incluir todas as dimensões do audiovisual: a produção, a preservação, a formação, a distribuição, a exibição. Porque senão, o setor inteiro não vai crescer junto. (Como a lei só volta a ser discutida no próximo ano) a gente tem um tempo para falar sobre isso e lapidar a lei. Incluir todas as dimensões de regionalidades. É assim que, de fato, vai dar certo.”