A plateia de 600 cadeiras do Cine-Tenda, na Mostra de Cinema de Tiradentes, estava lotada para assistir ao longa “Baby”, de Marcelo Caetano, que já estreou em diversas cidades brasileiras, passou por festivais internacionais e ganhou prêmio no Festival de Cannes. Quando sobem ao palco, o diretor e o protagonista, interpretado por João Pedro Mariano, relembram as origens: ambos são mineiros que se deslocaram até a capital paulista em busca de um sonho. É com essa trajetória em mente que o filme começa, apresentando um jovem de 18 anos que acabou de sair da Fundação Casa, um centro socioeducativo, e não encontra os pais ou uma casa para a qual voltar. Nesse cenário, conhece Ronaldo (interpretado por Ricardo Teodoro) em um cinema pornô e com ele se envolve, aprende sobre a vida, trabalha como profissional do sexo, briga, se apaixona, divide um teto. A relação entre os dois, que pode ser uma das mais complexas e sutis do cinema atual, constitui uma história atemporal, cheia de detalhes e de um tempo próprio, em meio à multidão. Quando o último frame é exibido, todos se levantam e aplaudem.
Em entrevista à Tribuna, Marcelo Caetano relembra sua trajetória como diretor, passando pelo longa “Corpo elétrico”, de 2019, vários outros curtas e também séries. Não é a primeira vez que marca presença na cidade histórica: “Eu vim para cá jovem, na universidade, ficava em casa com dez pessoas na sala para ver filme. Estar do outro lado e poder oferecer essa oportunidade é emocionante”, conta. Sua família é de Visconde de Rio Branco, na Zona da Mata, e ele morou até os 21 anos em Belo Horizonte. Quando se mudou para São Paulo, para trabalhar, se deparou com a cidade que, no longa, é também um personagem próprio. “Esses temas da migração, das famílias escolhidas e dos trabalhos estão em todos os filmes que já fiz. Acho que isso vem da experiência única que é viver em São Paulo, com esse encanto que a cidade causa, e o desencanto também. É um lugar em que você quebra a sua cara e aprende muitas coisas duras sobre a vida. Esses encontros especiais com pessoas muito diferentes dão sentido à dinâmica da cidade.” A exibição de “Baby” na mostra se deu pela homenagem à Bruna Linzmeyer, que compõe o elenco.
Mas a inspiração para o longa também veio de uma intimidade, que assim como nas cicatrizes que marcam a pele dos personagens principais, também deixaram algo latente em Marcelo. “Acho que essa relação tem muito a ver com algumas paixões muito fortes que tive na vida e que não se resolveram. Que o tempo não resolveu. Existem no corpo da gente como algo tão intenso que não pôde durar no tempo, ela quase foi. E deixa uma marca em carne viva.” A relação de desejo e espera, poder e dependência, controle e liberdade que se desenha, então, vai fazendo com que os personagens se apresentem de forma muito singular, cheios de nuances. E isso é feito dentro de um cenário do cinema queer, mostrando a presença dessa comunidade na efervescência cultural da metrópole, assim como na marginalidade em que são colocados.
Foram mais de 1800 atores tentando o papel principal, do Wellington (ou Baby), em uma série de testes que teve seis fases. O escolhido, João Pedro Mariana, de Guaxupé, que atualmente tem 21 anos, se mudou para São Paulo para o papel. A vivência foi intensa para que conseguisse construir todas as camadas que queria para aquele personagem, tão diferente dele mesmo, e incluíram várias visitas à Fundação Casa, às saunas da cidade, uma observação constante das dinâmicas do Centro de São Paulo e ainda aulas de vogue. “Foram muitos processos e muito estudo para criar esse personagem com várias nuances e questões. É um personagem que não entrega tudo, porque ele não sabe muito o que é tudo, o que é amar”, conta João Pedro, que foi premiado no Festival do Rio pelo papel. O que mais o impressionou foi justamente uma perspectiva ampliada do diretor para pessoas marginalizadas, dando a elas um protagonismo. “O que mais me marcou é o olhar que eu tenho com o outro. (…) Acho que o Marcelo dá um zoom no personagem do Wellington, que poderia ser um zoom em qualquer pessoa ali do Centro de São Paulo, porque todas têm histórias tão profundas e tão marcantes quanto ele”, destaca.
Existe algum amor em SP
A agitação da metrópole dita o rumo do filme, seja nas casas apertadas, nos prédios de classe média alta, nas baladas e na sauna, no metrô e na relação com as drogas. Para Marcelo Caetano, essa história mexe com o imaginário que o brasileiro tem sobre o município mais populoso do país, ao mesmo tempo que não romantiza as dinâmicas de poder e as dificuldades que existem em se morar lá. É também o que percebe João Pedro: “Eu sempre almejei ir para São Paulo. É um lugar de oportunidade, de trabalho, de conhecimento. (…) Eu falo que eu fui para lá para poder ser gay. Nunca fui reprimido em casa, mas acho que pra encontrar a nossa comunidade, para poder ficar com outras pessoas, conhecer outras pessoas, tive que sair do interior e ir pra lá. É uma cidade grande, que abraça muito.” Também as famílias escolhidas são um dos maiores temas do filme. “Sem essas famílias, a gente não sobrevive. Precisamos ter pessoas que estão no nosso corre, que estão nos protegendo. Se não, é muito difícil viver nesse mundo, ainda mais em São Paulo, essa cidade que te oferece tudo, mas ao mesmo tempo não te dá nada”, diz o ator.
Ao mesmo tempo, porém, o diretor revela que o local foi filmado com muito amor. “Não acho uma cidade especialmente fotogênica, mas a gente encontra a fotogenia jogando o corpo na cidade. Aproximando o corpo da cidade. A escala de São Paulo no filme é uma escala humana”, conta. Isso também é uma construção importante do diretor na relação com os atores, que possibilitam diferentes opiniões, falam sobre suas fragilidades e abrem para pesquisas para a cena – um dos momentos em que os personagens fazem fitagem no cabelo um do outro, por exemplo, foi sugerido por Ana Flávia Cavalcanti. O mesmo cuidado se estende na retratação de personagens LGBTQIA+. Durante a conversa, Marcelo Caetano falou inclusive de “Anora”, filme indicado ao Oscar, de Sean Baker, que também tematiza os profissionais do sexo e essas relações no mundo capitalista.
Ele fez um curso com o norte-americano, diretor do filme que considera brilhante, com quem aprendeu e de quem também se diferencia: “Acho que os filmes do Sean Baker partem de um respeito e de um amor muito grandes pelos profissionais do sexo. Eu fiz um curso com ele uma vez e aprendi muito. Ele olha para esses personagens e pensa quais são seus sonhos, quais são seus desejos. Mais que uma discussão moral do que por que faz. (…) O que separa os filmes, acho, é que ela é uma personagem muito solitária. Fico desejando que ela tivesse amigas, sabe? Que pudessem compartilhar esses sonhos dela. E essa é uma preocupação que tenho em fazer personagens LGBT, de não mostrar eles apenas sozinhos o tempo todo. Quero ver eles convivendo em comunidade”, diz.
O boxe e o vogue
Não é exatamente um spoiler, mas a relação complicada e sinuosa entre os protagonistas não tem um desfecho exato, apenas um último encontro em telas. O que fizeram um na vida do outro, no entanto, continua pairando na cabeça dos espectadores, seja na França, Tiradentes ou Guaxupé, onde o filme também foi assistido com sessão lotada. “Acho que tem muita gente que passa na nossa vida e faz essa bagunça. Ambos os personagens ensinaram muito um ao outro. Acho isso muito potente, porque às vezes a gente só taxa as relações como horríveis ou ruins, aquelas pessoas como péssimas. Mas no ‘Baby’ a gente vê como essas relações abrem leques. No filme, vemos esse encontro do boxe e do vogue, e depois esses papéis mudam de lugar. Acho que quando você se apaixona por alguém, se deixa aprender com outra pessoa”, diz João Pedro.
Marcelo Caetano traz sua visão sobre essa dinâmica, que leva cada um para um caminho, mas em uma estrada que continua sendo compartilhada de alguma forma. “O Baby precisava voar, viver a liberdade dele. E o Ronaldo precisava aprender com o Baby a ser mais doce e mais terno, esperar o tempo do outro, sem imposição. Tem um ensinamento de dignidade e humildade entre os dois”, diz. O que eles são realmente na vida um do outro, para ele, é difícil de dizer. Quando perguntei, ficou um tempo em silêncio. Mas continuou: “Acho que eles inicialmente são uma grande surpresa na vida um do outro. O Baby não esperava se apaixonar tão rápido na vida dele, e o Ronaldo talvez nunca tenha se apaixonado por alguém como o Baby. Essa surpresa da paixão, que da mesma forma que chega avassaladora vai embora avassaladora, é o que deixam um no outro. E que mantenham viva essa possibilidade de amar e se apaixonar, mesmo sabendo que as coisas têm um fim, que mudam e se transformam”.
*A repórter viajou a convite da Universo Produção