Noah Mancini tem pulsão de vida. O lugar onde ele quer morar são os instantes. O breve. Essa percepção transcorreu seus dois livros já lançados: o de contos, “Excertos“, e o de poesias, “Estilhas“. Os micro-relatos impressos nas páginas registram uma vontade de eternizar o corriqueiro: é esse seu ofício no audiovisual, na escrita, no desenho e, sobretudo, quando essas artes se encontram. Agora, ele parte para o lançamento de seu terceiro livro, “Delito delírio deleite”: mais um que reúne seus poemas e mais pedaços de sua história e seus fragmentos. Até o dia 27 deste mês, o livro segue em pré-venda pelo site Benfeitoria, com diversas formas de adquirir a edição, publicada pela Urutau.
Tribuna: Primeiro, queria que falasse sobre o título “Delito delírio deleite”
Noah: Nessa de escrever todo dia, ou quase todo dia, de certa forma a gente vai ganhando sobras e retalhos de canto. Você tem sempre alguma coisa no bloco de notas, no caderno, na conversa que você tem com você mesmo no WhatsApp. E eu tenho uma amiga que estava fazendo o projeto educativo da última Bienal de São Paulo, no Ibirapuera. E ela tinha que traçar um percurso temático, por alguma perspectiva, de obras que ela tinha gostado, que chamava atenção, que ela gostaria de pontuar para os visitantes na Bienal. E a gente estava conversando no bar e ela criou uma brincadeira de dizer três palavras que de alguma maneira resumissem a sua vida com a mesma inicial. E foram essas que ela usou para fazer o percurso dela na Bienal: delírio, delito e deleite. E eu peguei essas três palavras e falei que era o meu próximo título. Eu só inverti, coloquei o delito na frente. Esses poemas já estavam se acumulando, então eu separei eles nessas categorias: delito, delírio e deleite, e desenhei a partir disso. Criei algumas formas visuais no papel para tentar traduzir não figurativamente, mas sensivelmente o que seria cada uma dessas palavras.
Você tinha dito que “Estilhas” era como uma continuação de “Excertos”. “Delito delírio deleite” também é uma continuação?
Às vezes, independente das linguagens que eu trabalho, eu acredito que minhas obras acabam sendo uma continuidade de uma para a outra, de uma perspectiva anunciativa de olhar o mundo e dizer sobre ele. Mas eu acredito que “Delito delírio deleite” está um pouco fora da curva em comparação aos outros, seja pela organização em capítulos, pelo título, pelo disparador, até de começar a pensar nos poemas antes de colocá-los. Porque os poemas pré-existentes eu categorizei e pensei por que eles seriam delitantes, deleitantes e delirantes. Alguns, eu escrevi intencionalmente.
Esse encontro entre o desenho e a escrita se tornou, de fato, marca do seu trabalho? E a ideia segue fazer um encontro entre os dois?
Sempre que eu puder, eu quero ilustrar ou pensar graficamente os livros. Eu gosto muito de artistas e autores que fazem isso também. No decorrer dessas últimas publicações, eu tenho pensado em executar imagens com técnicas distintas. Até agora, eu tenho usado técnicas manuais de desenho. Nesse último, eu usei o giz pastel oleoso, e eu busquei aprofundar os rabiscos do “Estilhas” para formas com mais abstrações, linhas retas, curvas, pontos, rachuras, sempre, claro, buscando dialogar com o texto. E é uma coisa que sempre entra em debate com as editoras. Mas eu amo e acho que agrega no trabalho.
Como a brevidade consegue dar conta tão bem do cotidiano?
O cotidiano é isso: o tempo passando, as constatações no ônibus, em um bar, em um banho, na conversa com sua amiga, no restaurante, no ali, nesse momento. Porque quando você vê, o dia já amanheceu, em uma distração a gente já madrugou, sem querer, e atravessando a rua a gente se toca de algo, sobre alguém, sobre nós mesmos, uma compra ou um serviço que a gente fez. Nessas pequenas frações do agora, por mais que a gente faça planos com as pessoas e conosco, é no agora que essas coisas se concretizam. Nessas pequenas frações a gente vai vivendo a vida. Eu acho que, inclusive, a brevidade é bem cotidiana, ainda mais agora. Às vezes uns cinco ou seis poemas vêm de uma mesma situação, que eu acabo separando, sequenciando, para criar essa alternância e essa independência, autonomia poética de fragmentos de um mesmo momento. Esse momento que durou minutos ou horas, às vezes uma palavra ou frase, um diálogo, e eu fui dividindo e separando para que eles conversem, mas, ao mesmo tempo, tenham vida autônoma. Às vezes, bagunço também.
Como entender o que é universal e o que é individual na hora de escrever um poema?
Desde que o mundo é mundo a gente compartilha algo em comum, tem uma pulsão em comum. Eu não sei o que é, não sei se vou descobrir o que é, mas a gente come, morre, nasce, ama, viaja, se desloca, dialoga. Eu tento, com os poemas, partir de um lugar das experiências que me rodeiam, que eu atravesso elas, mas também partir desse lugar justamente para algo que possa ser corriqueiro e possa dizer também sobre o que podemos ter em comum. Às vezes um delito para alguém é um delírio para outro, e vice-versa. Aplicando os efeitos de sentido para as nossas próprias atitudes no mundo. Eu acho que se faz sentido para outra pessoa, se nos identificamos de alguma maneira, é esse pessoal que eu quero pensar, de uma experiência que parte para o mundo do outro, e que também chega até mim e me inspira e me faz ter vontade de escrever.
Quais são seus delitos, seus delírios e seus deleites?
A Gal, minha amiga que fez o percurso na Bienal, quando apresentava os trabalhos que escolheu, ela dizia que as vezes um trabalho que era um delito, também era um delírio, ou um deleite também era um delito. Não é uma coisa só. E eu fico pensando que é isso: uma coisa vai resultando na outra. Um delito que eu tenho por exemplo é amar demais os impulsos de vida e nisso eu acabo delirando no desejo, na vontade de viver, de ler o mundo, falar com ele, e isso – sendo tão difícil hoje em dia, ter esse impulso, essas vontades, os desejos, o amor pelo outro, por viver, por fazer as coisas – não seria um deleite legítimo, nato?