Saíam da oficina e ficavam sentados ao balcão até fechar o bar, na avenida, às margens do rio. Ali tomavam toda sorte de destilados. E cerveja, para hidratar. A estufa, reluzente, apresentava o menu do jantar, servido em pequenas porções, como manda a alta gastronomia. Vez ou outra, o Mudinho, figura folclórica da região, brotava por lá.
– Lá vem o filão.
– Come rápido que ele vai pedir.
Pedia, filava, sentava e, se estivesse futebol na TV, murmurava entre um lance e outro.
– Dizem que perdeu a língua comendo. De esganação. Mordeu, engoliu e nem sentiu.
As cadeiras suspensas e a porta de ferro semiaberta eram o cartão de despedida do dono, que raramente se fazia ler pelos dois.
– Dá pra pegar! Já peguei capivara assim. Não comi porque é crime. E a carne é dura. Pego, depois solto. Se cabe capivara, cabe onça.
– Não dá. A bicha é muito maior.
– É capivara crescida… To falando que a arapuca é forte. Madeira de demolição.
– Woooowwwoooowwww (gol do Botafogo).
– E por que ninguém pega? Tão tentando faz mais de semana. Tá famosa até a bicha.
– Esses bichos não são bobos! Tem que atrair direito.
– Então pega, uai! Deve ter até recompensa.
Breve silêncio.
– Patrão, bota esse resto de estufa numa quentinha que eu vou levar! Precisa separar não. Quanto mais misturado melhor. E pode entornar o caldo todinho por cima.
Pegou o marmitex e saiu sem dar tchau, enquanto o Mudinho lamentava o gol de empate do Bangu.
Dia seguinte, quando o amigo já se conformava com sua ausência, surge ele esbaforido, sob a porta entreaberta do bar.
– Peguei. Peguei a bicha!
– Tá de sacanagem!
– Num disse que era só botar a isca certa? Tá lá. Presa na arapuca.
– Deve ser capivara.
– Capivara não rosna daquele jeito!
– Tá de onda!
– Vamos lá ver! To te falando que é ela.
Caminharam até o quintal da casa, onde a suposta onça já havia feito um estrago no galinheiro, dias atrás. Por alguns minutos, apenas encararam a arapuca desarmada, em completo silêncio.
– Não to ouvindo rosnado nenhum.
– Mas tava. Rosnou alto e se debateu. Deve ter cansado.
– Esse bicho não cansa assim não.
– Ou comeu tudo e capotou.
– Deve ser capivara. Ou não tem nada aí dentro.
– Certeza que é ela.
– Então morreu. Não tem entrada de ar. Há quanto tempo tá fechada?
– Deve ter umas três horas já.
– Então morreu.
– E dão recompensa mesmo assim?
– Aí não sei.
– Devia ter feito uns furos na madeira.
– Onça ou capivara, na certa tá morta.
Cheio de certeza, deu alguns passos e ergueu a arapuca. Nada de onça. Nada de capivara. Só o Mudinho, de barriga cheia, cochilando depois do jantar.
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