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Livro de referência

(Foto: Felipe Couri)
(Foto: Felipe Couri)
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“Papai, queria ter o cabelo igual ao da moça da biblioteca.” Anos depois de minha filha me dizer de uma de suas referências na escola, encontro a mulher de cabelo black power, com uma faixa turbante laranja e um sorriso emocionado pela revelação. Entre livros, Gisele Lopes dos Reis Simões, em suas próprias palavras, divide seu “tempo entre o trabalho técnico, da organização, e a sensibilidade do pedagógico, de contar uma história que diz de valores” numa sala do Colégio Stella Matutina que carrega o nome de uma das religiosas mais atuantes na história da educação local. Nascida Nícia Paschoal, Irmã Aglaé vive na biblioteca escolar. “Ela foi diretora do colégio durante muito tempo.

Foi professora do CES/JF e de algumas outras faculdades da região. Foi orientadora vocacional e uma figura muito importante no cenário educacional da cidade. Todos gostavam muito dela, porque, ao mesmo tempo em que era firme, tinha um jeito de acolher os alunos e os funcionários do colégio”, conta Gisele, que não chegou a conhecer a ex-diretora, morta aos 93, na Belo Horizonte de 2011, que escreveu “O jogo das contas de vidro à luz da filosofia”, sobre Herman Hesse, e “A questão do poder em Michel Foucault”.

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Com Irmã Aglaé, Gisele compartilha a certeza de que a educação é composta de referenciais. Ninguém se forma à deriva. E todo discurso é uma espécie de porto. “De vez em quando, os professores vêm para fazer pesquisas, e eu também vou às salas. Falo dos livros que eles têm que ler ou de algum tema que diz respeito à biblioteca, como as enciclopédias. Fui, também, nas turmas do Ensino Médio para falar de apropriação cultural, despertá-los para novos questionamentos”, orgulha-se ela, aluna do bacharelado interdisciplinar de ciências humanas da UFJF, curso que a fez retornar às salas de aula após decidir-se por não concluir letras. “O legal é quando um aluno vem e fala: ‘Tia, escrevi um livro!’. Que legal, me mostra depois, eu falo. São frases soltas, mas eu digo que está muito bom. Falo: agora faz um desenho, escolhe uma capa, escreve seu nome, invente um nome de editora. É o primeiro, daqui a pouco vem outro”, indica a mulher de riso fácil.

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Filha da Preta e do Nem

Aos 8 anos, a filha da costureira Maria Aparecida, a Preta, com o auxiliar de escritório Moacir, o Nem, irmã da Gislaine (quatro anos mais nova), teve as brincadeiras na rua permitidas. “Nasci no Dom Bosco, bairro de periferia, com problemas que hoje são mais sérios do que quando morava lá. Frequentava o Grupo Espírita Semente, que era perto de casa, mesmo sendo católica”, pontua Gisele. “No dia de São Cosme e São Damião, minha mãe deixou eu e minha irmã irmos pegar bala. Ela falou assim: Olha! O único lugar que você não pode ir pegar é no centro. Eu falei que era lógico, até porque nem tinha dinheiro para pegar ônibus. Saí com as outras crianças. E fomos num lugar que era um galpão, superaberto, com o teto cheio de bandeirinhas coloridas, um bolo de coco gigante, mulheres com turbante e roupas brancas. Tudo lindo, músicas lindas, a gente rezou e comeu aquele bolo maravilhoso. Peguei o saquinho e guardei, achando o máximo ter ido lá. Cheguei em casa e contei para a minha mãe. Ela gritou: ‘Gisele, você foi no centro!’. Eu falei que não, que era no Dom Bosco. Aí ela explicou. Morremos de rir”, recorda-se ela, crescida entre a rigidez e o amor. “Minha mãe sempre disse que, se você é preta, precisa estar sempre pronta para encarar o que vier, precisa estar arrumada, precisa saber falar, precisa estar preparada para se defender. Falava do medo. E também de um orgulho de termos que representar. Ela dizia muito que não podíamos ser chacota de ninguém.

No colégio, fui chamada de macumbeira, que meu cabelo era ruim, e eu era chorona. Ela foi me defender uma vez, conversou e disse que não permitia aquilo comigo, mas me disse que da próxima vez era para eu me defender sozinha. Então, eu precisava ter argumentos. Quem eu era?”, questiona a jovem que se formou procurando respostas profundas, seja no Colégio Nossa Senhora de Fátima, onde fez o ensino fundamental, seja no ensino médio cursado no Compacto. Sonhou ter floricultura, ser astronauta, professora e nutricionista. E fez um tanto de outras coisas: trabalhou no atendimento da Biblioteca Central da UFJF, corrigiu provas, foi monitora de espanhol numa escola, depois de inglês, e auxiliar num hospital. Em 2013, foi admitida no colégio cuja biblioteca hoje é de sua responsabilidade.

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Mãe do Antônio

Aos 30, Gisele carrega no ventre Antônio, com 7 meses, fruto do casamento de três anos com Julio. “Formamos uma nova família no encontro de casas tão diferentes. A família dele é de origem alemã. Na minha família, questionamos de que parte da África o avô do avô veio. Minha mãe conta que a avó dela era índia, comia na cuia, com a mão, de cócoras”, diz a profissional que se pauta, diariamente, na diversidade para contribuir para a formação de pensares distintos e libertos. “Todo profissional tem uma atuação política, no sentido de se posicionar e mostrar que está atento. Eu como mulher negra preciso me posicionar enquanto ser humano. É importante se informar para isso”, comenta ela, ouvido a postos para os pequenos e para os grandes. “Criança é muito sincera, não tem o filtro que temos o tempo todo. Já os adolescentes são problematizadores, e eu sempre converso com eles”, conta ela, que colou tirinhas do personagem Armandinho sobre as palavrinhas mágicas pela escola toda, onde encara o aprendizado diário da maternidade. “Como vou formar um menino nesse mundo machista?”, indaga.

Gisele, em sua delicadeza, diz da importância do conhecimento, não apenas do que se faz em sala, mas também do que se faz pelos livros. É no discurso que a gente se faz aceito, diz ela, em seus atos. Qual livro gostaria que Antônio lesse? “‘Sejamos todos feministas’, da Chimamanda Ngozi Adichie. É um livro que tem exemplos bem palpáveis de situações cotidianas. Por que quando chega um homem e uma mulher a um restaurante o garçom pergunta a ele o que eles querem? Porque dá ao homem a conta para pagar? Eu vivo isso no meu dia a dia. Todos ficam espantados quando conto que não sou eu quem lava a roupa, que faz comida. Mas não estou em casa, e ele cozinha muito melhor que eu. Por que não?”

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