Rafa Castro acredita que é na simplicidade que grandes transformações acontecem. É a partir disso que o mineiro de São João Nepomuceno lança o curta-metragem “Teletransportar”, que perpassa um dia na vida de Juliano, interpretado pelo bailarino Diogo Granato: um professor que se viu entregador de aplicativo por causa da pandemia, na cidade de São Paulo, onde o alento e o “mundo fraterno” só existem em casa, com a família. O filme, gravado em película e revelado em Nova York, é um desdobramento de seu último disco, também com nome de “Teletransportar”, lançado em abril do ano passado. Apesar de as canções serem fruto de viagens profundas para dentro do Brasil, feitas em 2019, elas, ao mesmo tempo, funcionam como questionamento do que hoje vivemos no país. “As músicas não eram premonitórias, elas são óbvias e realistas. Eu fui compondo em cima do que a gente estava vivendo naquele momento”, argumenta o músico.
O pianista, radicado em São Paulo há sete anos, conta que aprendeu a compor escrevendo trilhas sonoras para teatro e cinema. Por causa disso, quis fazer o inverso: “Desde que comecei a compor, sempre tive esse sonho de que não só as imagens afetassem minha criação musical, mas que minha música criasse fagulhas para o cinema, roteiros, narrativas, e que eu fizesse parte disso de alguma maneira. Eu gostaria que minha música virasse influência para as telas”. As músicas que formam o disco “Teletransportar”, em si, são imagéticas e permitem que cenas e cenas sejam criadas, de maneira íntima. A ideia de Rafa era, junto ao disco, lançar algo visual. Mas a pandemia chegou e, como ele afirma, “as coisas saíram do controle”. Ainda assim, a chama permaneceu acesa. O diretor ele já tinha: André Inácio, que desde o início acompanhou seu processo criativo para o disco. Eles mantiveram contato durante esse tempo todo em que tudo ainda era mais incerto. No começo do ano, Vini Bock, diretor de fotografia, entrou no grupo. A chama se alastrou. “Foi quando a gente teve a ideia de criar um roteiro que tivesse a ver com a pandemia, porque todos eles sentiam falta – e eu também – de registros, de alguma maneira poéticos, crus e realistas, sobre o dia a dia na pandemia.”
A vida de muitos
O curta-metragem de seis minutos retrata a rotina de Juliano, que, de alguma forma, é a de muitos brasileiros. “A história desse professor é a história de muitos que viveram exatamente isso e tiveram de buscar outra forma de renda. Em São Paulo, principalmente, isso aconteceu demais. Eu falei da vivência tanto financeira quanto emocional, de uma angústia de não saber como vai ser o amanhã. É uma tentativa de falar com mais pessoas”, conta o músico. Nos detalhes é que descobrimos quem, afinal, é o personagem.
Primeiro vieram duas músicas: “Teletransportar” e “Cacos de vitral”. Rafa sabia que a que dá nome ao disco seria o tema do curta, assim como o título, porque, além de ela conseguir retratar o dito e até o não dito, ele tinha vontade de potencializá-la e extrapolar sua capacidade musical. A outra porque é a favorita de André, diretor do filme, e conta sobre a maior cidade do Brasil, que é cinza, que cobra, mas, ao mesmo tempo, é esperança. As duas, então, nortearam a escrita da história: em casa, perto da família, no aconchego, onde crer que “tudo vai passar” é mais fácil, a primeira é a trilha. Na rua, no caos, “com atenção”, sob o olhar do desconhecido, é a segunda que embala as pedaladas.
Mas Rafa queria que o filme tivesse também uma dança sobre o silêncio, e esse momento seria o ápice do filme. Escolher um bailarino para o papel não foi à toa. Ao som de “Cicatrizes”, composta pelo próprio Rafa, Diogo se entrega ao papel de Juliano e faz com que a volta para a casa, depois de um dia de trabalho, seja catártica, com “a força do incansável fim”, como canta na música. Esse é o grito. “O grito mais forte que eu tenho para falar sobre qualquer coisa é a minha arte”, completa. Quem forma a família da história, além de Diogo, são Ana Elisa Melo e Sofia Granato, como mãe e filha.
Um contador de histórias
Essa crônica retratada no filme, no entanto, nada tem a ver com a realidade do músico. Mas, ao mesmo tempo, ali está o registro da sua perspectiva. É seu olhar que guia o desenrolar das histórias. É por isso que ele afirma ser contador de histórias: “A trilha sonora me ensinou a ser um contador de histórias. Eu entrei nessa e não vejo saída. E eu não sei contar de outro jeito. E gosto das histórias que têm começo, meio e fim, que são as mais interessantes. As minhas músicas são autobiográficas e sempre vão falar sobre mim. Então, enquanto eu olhar o mundo dessa maneira, eu vou continuar fazendo assim”.
Na contramão de artistas, Rafa Castro não divulgou os bastidores da gravação, que, por ser analógica, demandou tempo, ensaio e equipe grande – toda testada e segura. Essa decisão foi pensada. Ele conta que, apesar de ser mais difícil de chegar às pessoas, é mais interessante, porque é ao assistir que surge a curiosidade do making of. Além disso, o filme foi postado, até então, apenas no YouTube, “para criar nas pessoas esse clima de pureza, de entrega, de mergulho, e que elas conseguissem entrar mesmo na história, ao contrário do que acontece no Instagram, por exemplo”.
Atravessado pela arte
O álbum “Teletransportar” já é como uma grande história, dividida em capítulos intensos que provocam sensações diferentes. As três músicas que são trilha do filme fazem parte de um mesmo capítulo. Ali, elas têm um sentido; na vida do Rafa, outro; e assim segue. Entretanto, o mais comum é investir no lançamento de singles (uma só música), e só depois lançar um CD, que não necessariamente tem uma história contada. Para Rafa, isso acaba perdendo sentido. “Sou apaixonado, atravessado, completamente influenciado por outras artes. E acho que fazer discos e ainda não ter desistido disso vem muito da minha relação com as artes e com o cinema, por conta de ter histórias atravessadas por outras histórias.”
O disco mais novo, além disso, é o primeiro que acaba por lançar Rafa Castro como letrista, apesar de o outro, “Fronteira”, já trazer algumas letras suas, ainda que, nele, seja a melodia o grito. “O ‘Teletransportar’ abriu muitas portas para minha criação.” O filme fez surgir um EP com as quatro músicas que compõem a trilha. Nele, está presente a versão especial de “Teletransportar” que Rafa fez para o plano sequência final. Teletransportar” não existiria sem “Fronteira”. O disco marcou uma mudança em sua vida e o posicionou como o artista que hoje é: ainda mais expressivo, sensível e singelo em seu grito.
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