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Demolição de casarões históricos para verticalização afeta patrimônio cultural e memória de cidades

casarões históricos
No primeiro dia de maio, casarão moderno foi destruído para dar lugar a um prédio, no Bairro Bom Pastor (Foto: Google Earth/ maio de 2022)
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O aumento da população de Juiz de Fora nos últimos anos é refletido em um fenômeno relacionado à urbanização: a verticalização, que se refere a um aumento no número de construções verticais para servirem de moradia para um maior número de pessoas. Entretanto, para a construção de prédios, em alguns casos, são derrubados casarões históricos. Consequentemente, a memória da cidade, enquanto patrimônio cultural, pode ser destruída.

No primeiro dia deste mês, no feriado do Dia do Trabalho, uma casa de arquitetura modernista, construída na Rua Doutor João Penido 60, no Bom Pastor, foi demolida. No espaço vazio, será construído um prédio. O projeto do imóvel derrubado é da família Arcuri. O bairro, inclusive, era majoritariamente residencial no passado. Atualmente, segue a tendência de diferentes regiões do município e conta com cada vez mais prédios. O Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de Juiz de Fora (Comppac) informou que os proprietários da casa possuíam alvará de demolição. O caso do Bom Pastor não é isolado: em 2022, outros dois casos, em diferentes regiões da cidade, chamam atenção.

Em 2022, casarão histórico na Rua Santo Antônio foi derrubado; prédio já está sendo construído no lugar (Foto: Isabel Pequeno/ Arquivo TM)

Em outubro, um casarão histórico, com estrutura construída há décadas e colocada ao chão por máquina na Rua Santo Antônio 982, no Centro, foi derrubado para dar lugar a um empreendimento imobiliário. A casa em questão fez parte da série da Tribuna “Casarões da Memória” e ganhou cores pelas mãos do artista Eduardo Borges em 2003. Também integra o livro editado pelo jornal “Juiz de Fora em 2 tempos” (1997). “A casa da Rua Santo Antônio mostra a arquitetura eclética que se desenvolve na cidade junto com a economia industrial, entre o final do século passado e a década de 30. A construção revela uma inspiração art-nouveau”, diz o texto publicado à época.

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Já em dezembro, o palacete conhecido como Castelinho do Alonso, no Bairro Bairu, Zona Leste de Juiz de Fora, foi demolido. A edificação, construída na década de 1950, era alvo de batalha judicial desde 2011, quando foi iniciada a movimentação necessária para a derrubada da estrutura. O Ministério Público (MPMG) e a Associação de Moradores dos Bairros Manoel Honório e Bairu argumentavam que o casarão deveria integrar o patrimônio, enquanto a Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), ainda na gestão anterior, defendia que o imóvel era destituído de valor histórico, cultural, arquitetônico e paisagístico. À época, uma fonte ligada ao Executivo municipal afirmou à reportagem que a demolição aconteceu sem que houvesse permissão por meio de alvará.

Castelinho do Alonso, no Bairro Bairu foi construído em 1950 e foi derrubado também em 2022 (Foto: Olavo Prazeres/ Arquivo TM)

Verticalização e patrimônio cultural em Juiz de Fora

Essas demolições de casarões históricos não foram as únicas no município. O processo de verticalização tem relação com o conceito de Patrimônio Cultural, como conta o engenheiro, arquiteto e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Fábio Lima.

“Ele representa a herança de um determinado grupo social, traduzido por bens materiais ou imateriais, e que revela a identidade desse grupo na apropriação de um determinado território. Na Constituição da República de 1988, a definição foi ampliada, com inclusão da referência cultural e dos bens passíveis de reconhecimento, sobretudo os de caráter imaterial. Nesse sentido, ao mencionar as casas históricas, essas, na verdade, representam bens culturais de interesse, no sentido da sua materialidade, na composição de um conjunto relacionado à Paisagem Cultural de Juiz de Fora.”

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Além disso, Fábio destaca que a cidade se traduz em um processo onde tempos diversos foram edificados e continuam a ser construídos, que serão substituídos na nova dinâmica. Há uma preocupação com a preservação do patrimônio cultural a partir das perdas geradas pelas transformações urbanísticas. No caso de Juiz de Fora, remete aos anos 1970.

“A demolição do Colégio Stella Matutina foi um marco importante para essa preocupação, em 1978, com a organização da proteção em termos legais, com a Lei nº 6.108, de 1982. Assim, a proteção do patrimônio cultural se coloca como uma resposta às modificações impostas pelo mercado imobiliário, que visa a renovação em primeiro lugar, sem a consideração da história da cidade. Por meio dessa proteção, é possível preservar o que resta como referência de vários tempos construídos, em que a cidade se formou e se consolidou.”

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Demolições de casarões históricos afetam pertencimento

O patrimônio arquitetônico e urbanístico é fundamental para se reconhecer na cidade em que vive, além de ter uma vida mais saudável e digna para controlar, de forma adequada, o seu crescimento, conforme afirma o vice-presidente do Comppac, Marcos Olender. “Todos têm edificações e lugares que o identificam, que o fazem sentir pertencente àquele local, e vice-versa. São referências históricas e culturais fundamentais para fortalecer esse vínculo, bem como para afirmação da cidadania. A escolha é feita pela importância histórica na formação das comunidades e identificação destas com os patrimônios, por fortalecerem seus traços e laços afetivos e culturais com a região em que vivem.”

A verticalização desenfreada baseada apenas no interesse de lucro imediato das empresas que as estimulam e realizam, segundo Olender, enfraquece a relação das pessoas com os lugares e afeta o desenvolvimento da cidade. “Provocam, geralmente, perda significativa da qualidade de vida dos habitantes daquele lugar no que concerne à própria infraestrutura necessária para uma vida mais saudável, como o aumento significativo do tráfego, a carência de oferta adequada de energia ou de sistemas de distribuição de água e coleta de esgoto”, esclarece.

“A preservação das edificações – bem como praças, áreas de lazer e esportivas, por exemplo -, consideradas importantes como referências históricas e culturais da cidade e do município, é fundamental não só por respeito aos habitantes, mas ao futuro das próprias cidades. Elas reforçam as identidades da população enquanto referências, que a população se identifica.” Para Olender, destruí-las é destruir, consequentemente, a própria cidade enquanto entidade agregadora fundamental dos seus habitantes, fazendo com que eles não se reconheçam mais nela.

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Especialistas acreditam que há formas de crescer a cidade, mas mantendo a sua memória preservada (Foto: Felipe Couri)

‘Derrubada do patrimônio cultural não traz benefícios para a cidade’

“A cidade é a sua comunidade, e se a memória das ocupações não está sendo preservada, isso é, antes de tudo, um sinal de que a comunidade não valoriza o seu passado”, afirma Fábio Lima. Além disso, completa que a derrubada do patrimônio cultural edificado representado pelas casas de interesse cultural ou históricas, que não são muitas, não traz benefícios para a cidade. “Afinal, a verticalização pode ser realizada sem a perda da memória, ainda mais considerando o pouco que resta em termos materiais.” Para evitar que isso aconteça, ele reforça que basta direcionar, via zoneamento, as novas edificações para outros setores da cidade e restringir as construções nas áreas de interesse cultural.

“Muitos conjuntos já foram demolidos nesse processo: das casas às fábricas, passando pelos cinemas e pelo comércio, dentre outros. A cidade fica menos atrativa, considerando que esse patrimônio cultural está diretamente relacionado com o interesse turístico. A cidade do presente, com essa renovação provocada pela verticalização contínua, perde qualidade, gera mais atração para veículos motorizados e se transforma em um conjunto de prédios altos empilhados. E o passado pode ser visto apenas nos cartões postais, o que traduz a cidade da memória retratada por Ítalo Calvino no seu ‘Cidades invisíveis’”, enfatiza o professor.

“A marca de Juiz de Fora é a contemporaneidade, com as suas contradições, em termos de conjuntos edificados, com tecnologias atuais e inovações, além de aglomerados estendidos pela área urbana, com muita precariedade. Junto a prédios altos e sofisticados, preferencialmente na parte Sul da cidade, temos a segregação urbana em vários trechos da cidade. A preservação não é fácil, pois temos uma cidade que se renovou de maneira rápida sem considerar o passado e que continua nesse processo. Por essa via, a emergência da busca da requalificação ambiental e cultural das nossas cidades é algo primordial”, finaliza Fábio.

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Papel do Poder Público

Para que a preservação do patrimônio e o desenvolvimento urbano aconteçam de forma que a população da cidade tenha uma vida melhor, Marcos Olender reforça que é fundamental que se tenha um planejamento urbano eficiente. Ele deve acontecer, de acordo com o vice-presidente do Comppac, de forma participativa, ouvindo as comunidades. “Se só o interesse de certos grupos econômicos predomina, o ambiente municipal tende a se tornar cada vez mais precário e insuportável para a vida decente dos usuários e habitantes. Os próprios agentes econômicos, muitas vezes os que mais reclamam dos tombamentos, devem entender que eles próprios podem ser fundamentais para o crescimento urbano consequente.”

Fábio Lima complementa que a preservação do patrimônio cultural se insere em um processo de requalificação que deve envolver as comunidades com participação nas políticas públicas. “Quem deve e pode proteger o seu patrimônio cultural são os interessados diretamente e, para isso, temos que recuperar o sentido comunitário com vistas à preservação da memória. A comunidade, com seus gestores públicos municipais, estaduais e federais, pode proteger a sua memória.”

Preservar a história da cidade perpassa por diferentes ações através do Poder Público, particularmente com o setor de proteção do patrimônio cultural, mas não apenas dele. De acordo com Fábio Lima, isso implica em conhecimentos diversos e integrados para as soluções, que envolvem uma visão de continuidade administrativa e planejamento. “A renovação das esperanças por um futuro melhor para as gerações que virão, além daquelas que persistem, é o que motiva o trabalho. Proporcionar um futuro assentado em políticas públicas construídas de modo coletivo, que considerem a proteção da memória e do patrimônio cultural e ambiental dos municípios.”

Por essa via, o professor coloca que busca-se também a requalificação sócio-urbanística pela conservação das áreas florestadas e o reflorestamento das que foram suprimidas, pela despoluição dos cursos d’água e a preservação daqueles ainda em condições adequadas, dentre outros.

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