Em comemoração aos 174 anos da cidade, a Tribuna reúne uma série de matérias que relembram fatos únicos na Princesinha de Minas. A personagem da vez é a onça-pintada, digna dos “causos” contados pelos avós para colocar medo nas crianças bagunceiras. Mas de mentira essa história não tem nada, afinal pesquisadores e entidades muito competentes uniram forças para realizar a captura do animal e mantê-lo em segurança. No final das contas, a onça se tornou, além de uma lenda em Juiz de Fora, um instrumento de educação ambiental.
Uma onça no jardim
Foi no Jardim Botânico da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) que ela foi avistada pela primeira vez. Fazia duas semanas que os portões tinham sido abertos ao público e logo tiveram que ser fechados, para a segurança da população e também do animal. Quem gravou o primeiro vídeo foi o vigia Wamildo Ribeiro, hoje conhecido como Wawá da Onça. O vice-diretor do Jardim Botânico, Breno Motta, relembra a reação que teve ao receber a ligação de Wawá já tarde da noite.
“Eu estava em casa, já era noite, e recebi um WhatsApp do Wamildo falando ‘cara, tem uma onça aqui no Jardim Botânico’. Na hora eu pensei, ‘como assim uma onça?’”, recorda Motta. “No início, foi uma reação de incredulidade, depois pensei que poderia ser uma onça parda, afinal elas são até comuns aqui na região. Mas quando ele disse que era uma onça-pintada, continuei sem acreditar. Fazia mais de 80 anos que uma dessas não era registrada em Juiz de Fora e ela iria aparecer logo no momento em que o Jardim Botânico foi inaugurado?”
O “timing” do aparecimento do felino levou inclusive à criação de teorias da conspiração. Conforme conta Motta, teve gente falando que os próprios funcionários do Jardim plantaram a onça lá dentro para conseguir publicidade para a reserva. “Ao mesmo tempo, houve moradores que falaram que já tinham visto onça dentro da mata, antes de ela pertencer à Universidade, que tinha um tempo que isso era comum. Afinal, são 512 hectares de Floresta Atlântica preservada. Áreas nas quais, desde que a UFJF comprou, os pesquisadores têm trabalhado pela preservação e conservação da sua sócio-biodiversidade.”
O motivo real do aparecimento da onça, conforme aponta Breno Motta, foi a condição favorável que ela encontrou na mata, pelo menos por um tempo, para procurar alimento. O felino, que era um macho de aproximadamente 4 anos de idade, estava na fase em que se desprende da mãe e sai à procura de uma parceira. A teoria é que a onça chegou até a mata e não conseguiu avançar devido à ausência de um corredor ecológico que a levasse até uma floresta mais ampla. “Um dos motivos pelos quais a gente decidiu pela realocação do animal foi porque a floresta não consegue sustentar sozinha um animal topo de cadeia. A prova disso é que provavelmente a caça dela já estava escasseando e ela teve que ir para a área urbana à procura de alimento. Tanto que ela atacou o galinheiro de um morador.”
Após 17 dias passeando pela cidade, a onça foi capturada através de uma armadilha posicionada no Jardim Botânico. O animal foi levado pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF) para o Parque Estadual do Rio Doce acompanhado por um veterinário do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (Cenap/ICMBio). Ela chegou a ser monitorada durante um tempo por um colar cervical, que é programado para se desprender após certo período. Segundo o vice-diretor do Jardim Botânico, o local para onde a onça foi encaminhada já possuía outras quatro da espécie, um macho e três fêmeas.
Em abril do ano passado, a UFJF divulgou vídeo em que filhotes de uma onça-pintada, acompanhados de uma fêmea, caminham no Parque Estadual do Rio Doce. Não é possível determinar com 100% de certeza, mas há chance de que esses filhotes sejam da onça que passou por Juiz de Fora, visto que ela foi introduzida na mata em fase de acasalamento. Até onde se sabe, a onça juiz-forana, se assim pode ser chamada, está bem de saúde e vivendo na companhia de outras da espécie no Parque Estadual.
De onde veio essa onça?
Fato é que pelos dias em que a onça rodou Juiz de Fora todo mundo se tornou um pouco especialista. Não tinha uma pessoa que não soubesse apontar um motivo que levou o animal até a cidade. Será que era de cativeiro? Ela realmente estava escondida nas matas do Jardim Botânico todo esse tempo?
No podcast “Mistérios da Mata do Krambeck”, produzido em 2022, a Tribuna conversou com moradores do entorno do Jardim Botânico, que contaram suas teorias sobre o porquê de a onça ter aparecido depois de tanto tempo. Dona Manoelita mora no entorno da mata há mais de 20 anos e, para ela, a onça estava sendo criada em cativeiro e foi solta na mata. “Colocaram a onça lá. Minha irmã viu, ela era muito mansa. O cachorro corria atrás dela. Ela era presa. Foi criada aqui. […] Disseram que ela matava as galinhas, mas não comia. Virava lata de lixo e tudo.”
Os pesquisadores dizem o contrário. Como explica Breno Motta, a análise das garras e da pelagem apontaram evidências que mostram que a onça era de vida livre. “Quando o animal passa por cativeiro ele tem marcas nas garras e na pelagem. Por estar em um espaço reduzido, ele acaba passando por trechos do cativeiro que deixam essas marcas. Mas não detectamos nenhuma dessas alterações, o que indica que era um animal selvagem de vida livre que estava em processo de migração.”
Venice Verônica é vizinha do Jardim Botânico e conversou com a Tribuna na semana passada sobre a aparição. “Deu o que falar. Ainda dá, né? Até hoje todo mundo fala disso. A gente vai pegar um Uber aqui e eles perguntam se a gente não tem medo de aparecer outra.” Há 40 anos ela vive no Bairro Santa Terezinha e disse que já escutou muitas histórias sobre onça. Ver mesmo, ela nunca viu, nem quando era criança e nem em 2019. “Mas os antigos contam que nessa mata aí tem muita onça. Graças a Deus eu não dei de cara com ela. Nem quero dar!”, conta rindo.
Venice acredita nos pesquisadores, para ela a onça era de vida livre, acabou se perdendo da mãe e foi parar na cidade. Ela ainda crê que na mata possa existir mais indivíduos da espécie, mas que elas ficam escondidas para não serem levadas embora, como aconteceu com a outra. “Ela era muito linda, né? Eu vi nas fotos. É um bicho muito bonito. Tem que proteger mesmo e tomar cuidado para ninguém fazer nenhuma maldade.”
Também morador do entorno, o aposentado João Carlos de Castro jura que ouviu o rugido do animal na época em que ele apareceu no Jardim Botânico. “Não cheguei a ver ela, não. Meu irmão que viu, parada ali na frente do portão. Mas de noite a gente escutava ela caçando. Chegava a arrepiar a espinha. A gente deixava a casa toda trancada para não correr risco de ela entrar.” Sobre teorias de seu aparecimento, João diz não ter certeza. Acha que ela pode ter vindo pelo rio, de outras matas próximas, mas também não descarta a possibilidade de ser um animal de cativeiro. “Tem gente que pega esses bichos para criar, quando fica grande eles têm medo de serem descobertos pela polícia e soltam em qualquer espaço.”
O certo é que a onça se tornou um mito no Bairro Santa Terezinha, uma história que será contada de geração em geração, como um bom “causo” deve ser. “Eu uso ela pra colocar medo no meu netinho. Ele fica fazendo bagunça em casa e eu falo que se não obedecer a onça do Jardim Botânico vai vir pegar ele”, conta João Carlos. “Mas pior é que o menino não tem medo, não! Outro dia disse que vai continuar fazendo bagunça porque quer ver a onça. Vê se pode uma coisa dessas?”