“Quando me deparei com as mensagens do agressor, eu, como mulher preta, me senti muito invalidada, muito desrespeitada e muito triste. Fiquei sem reação. Nunca imaginei ter que passar por uma situação tão absurda dessas.” O desabafo é da estudante Graziele Campos, de 24 anos, mais uma vítima de injúria racial de Juiz de Fora.
No último dia 13, ela foi surpreendida e ofendida, quando se deparou com uma foto sua em uma montagem no Instagram ao lado de uma imagem de uma mulher branca, com os seguintes dizeres: “Suja, cabelo duro bombril. Macaca, preta, suja, pobre da favela rouba, mata, usa drogas e só serve pra sexo”. Já na foto da mulher branca, o mesmo autor escreveu: “Limpa, cabelo liso e loiro. Mulher branca privilegiada, rica trabalhadora, estudiosa e mulher de família para casar”.
Em entrevista à Tribuna, Graziele conta que essa agressão a deixou transtornada. “Já passei por outros tipos de preconceito, mas sempre de forma velada. Mas desta vez, como era tão explícito, eu fiquei em choque. Meu coração acelerou muito e fiquei muito abalada.”
O crime contra a estudante é mais um que acontece em Juiz de Fora. Em 2021, foram registradas 22 ocorrências de injúria racial. São oito casos a mais do que em 2020, quando 14 denúncias foram feitas, como apontam os dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais (Sejusp).
O aumento percentual foi de 57,14%, mas, conforme especialistas, os números estão longe de refletir a realidade, uma vez que muitas vítimas preferem o silêncio à exposição.
A pouca existência de equipamentos públicos para o atendimento de crimes de racismo e o fato de que operadores do direito tendem a considerar que há crime de racismo apenas quando ele é explícito colaboram para as subnotificações.
Inquérito aponta mais vítimas
O caso que envolve a injúria racial contra Graziele Campos é alvo de inquérito instaurado pela Polícia Civil, que reúne a denúncia de outro rapaz vitimado pela mesma pessoa que é dona do perfil falso que ofendeu a estudante. A delegada Ione Barbosa, que está à frente das investigações, disse que mais vítimas, possivelmente, devem surgir durante essa investigação.
Essa não é a primeira vez que Graziele foi ofendida pelo mesmo falso perfil. O autor das agressões já tinha atacado a estudante em 28 de outubro de 2021. Em mensagem privada pelo Instagram, ele disse: “Você, sua macaca! Preta suja! Os pretos fedem, roubam e são sujos! Você merece ser estuprada. Eu sou superior a você”.
Frente a gravidade dos ataques, a delegada Ione Barbosa solicitou à Justiça uma medida protetiva para Graziele, devido a sua situação de vulnerabilidade. Conforme a policial, que também é presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Juiz de Fora e da Ong Adcuidar, a própria vítima fez a denúncia. “A situação teve início em outubro, quando um amigo da vítima foi ofendido pelo mesmo agressor, e ela denunciou a conta do Instagram do ofensor. A vítima achou que a situação tinha cessado, mas foi surpreendida com recentes postagens”, ressaltou.
A Polícia Civil instaurou o inquérito para investigação e está em fase de coleta de provas, fazendo contato com operadoras e redes sociais. “Ele (o agressor) irá responder pelo crime de injúria racial, cuja pena é de um a três anos, podendo ser aumentada, uma vez que a divulgação foi realizada em local de ampla divulgação, como a rede social”, enfatizou.
Conforme Ione, o agressor também está sendo investigado pelo crime de injúria racial contra o rapaz, que é amigo de Graziele. “É importante destacar que o crime de injúria racial foi equiparado ao racismo, tornando-se inafiançável e imprescritível, conforme novo entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). Temos aqui uma situação de extrema gravidade e tenho outras possíveis vítimas que ainda serão ouvidas”, afirmou a delegada.
Graziele quer encorajar outras pessoas
À Tribuna, Graziele Campos comentou a respeito da medida protetiva que foi concedida pela Justiça a seu favor. “Não sabemos quem é o autor desse crime, não sei se corro risco na rua. Se essa pessoa cruzar comigo, não sei o que faço. Com a medida, me sinto um pouco mais segura, mas não 100% confiante”, disse.
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Segundo a jovem, toda a sua família foi atingida pelas ofensas postadas no Instagram. “Todos da minha família ficaram tristes, porque é uma ofensa que não é somente contra mim, mas contra toda a minha família, que é formada de pessoas pretas. Todos se sentiram ofendidos. Além disso, no áudio que gravei da ligação, o agressor também ofende minha mãe”, contou. De acordo com Graziele, sua mãe está sofrendo com essa situação. “Ela fica preocupada e triste, porque percebe que eu não estou bem. Tento não passar pra ela a tristeza que estou sentindo, mas é inevitável, e a mãe da gente sempre conhece. Meu namorado, minha irmã, meu cunhado, estão todos revoltados. Todos estão inconformados e querendo justiça”.
A estudante afirma que decidiu procurar a polícia porque, com a repercussão do caso, espera que possa encorajar mais gente. “Que outras pessoas possam se sentir mais acolhidas, verem que tem gente lutando contra essa situação, porque, infelizmente, eu sei que não sou a última. Quando resolvi me expor dessa maneira, pensei muito nas outras pessoas, porque, infelizmente, sabemos que preto, pobre e mulher não são muito ouvidos, não têm muita voz. Então, com essa repercussão, com essa exposição, acredito que outras pessoas vão se sentir mais encorajadas e denunciar qualquer tipo de situação racista”.
Empresária indiciada
Em outubro de 2021, a Polícia Civil de Juiz de Fora, por meio da 6ª Delegacia, indiciou uma empresária de 37 anos pelo crime de injúria racial. A mulher teria dirigido palavras ofensivas, como “macaca”, para a motorista de transporte por aplicativo Ada de Souza Bastos, 42, durante o registro policial de um caso de agressão contra outro motorista de aplicativo, no Bairro Grajaú, Zona Leste da cidade.
Na ocasião do indiciamento, em entrevista à Tribuna, Ada afirmou: “Eu sou uma mulher humilde de 42 anos, mas, quando ela (a indiciada) faz essa ofensa, não é só contra mim, mas contra um povo que vem antes de mim, lutando para que esse preconceito acabe. Ela trouxe esse preconceito à tona de forma tão suja, desrespeitando toda uma história de sofrimento.”
Minas aparece com destaque na rota do ódio
A reportagem teve acesso a uma postagem de autoria do mesmo perfil falso que atacou a estudante Graziele Campos. Nela, o autor deixa claro seu ódio, dizendo-se racista assumido. “Não gosto de negros, não falo com negro e qualquer negro que se aproximar leva porrada. Sou racista assumido. Não sou obrigado a conviver com esse povo da favela que tem arma, usa e vende drogas, rouba, não tem educação…”
Usar as redes sociais tem sido a forma mais comum de angariar mais racistas no Brasil, país que, em 2020, teve 10.291 casos de injúria racial. Por outro lado, o número absoluto de casos de racismo não ultrapassou os três mil no mesmo ano. Os dados presentes no Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam a urgência do debate sobre o racismo e o aprofundamento do problema entre os brasileiros, principalmente em relação à subnotificação dos registros criminais.
Combustível nas redes
Reportagem exibida no Fantástico, da Rede Globo, no último dia 16, mostrou que as células de grupos neonazistas aumentaram e se expandiram para as cinco regiões no Brasil nos últimos três anos, principalmente, para as regiões Centro-Oeste e Sudeste, com destaque para Minas Gerais e Rio de Janeiro. Conforme a reportagem, existem pelo menos 530 núcleos extremistas, um universo que pode chegar a 10 mil pessoas. Isso representa um crescimento de 270,6% de janeiro de 2019 a maio de 2021.
São grupos que glorificam o masculinismo, incentivando o ódio ao feminino, ao negro, à comunidade LGBTQIAP+, aos nordestinos, a imigrantes e que ainda negam o holocausto. Como mostrou a reportagem, o principal combustível para o elevado número de células neonazistas no Brasil vem das redes, onde esses grupos realizam o compartilhamento de material extremista, mensagens de ódio e manifestações que extrapolam as redes sociais.
O racismo se dá pela aparência
Presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB/Subsede Juiz de Fora, Luiz Fernando Cunha Júnior, avalia que a internet está, cada vez mais, tornando-se um ambiente hostil e propenso a casos de injúria racial, como o ocorrido com Graziele. “Há pessoas que consideram que por trás de uma tela de computador ou de celular vão ficar impunes. Isso faz com que todos os tipos de violência se acentuem cada vez mais nas relações travadas por meio da internet”.
Luiz Fernando explicou como uma pessoa pode identificar que está sendo vítima de injúria racial. “Sempre que ela receber uma ofensa com termos que venham a ferir sua raça, sua cor, sua etnia, sua religião. Uso de palavras que façam correlações com a cor da sua pele, com seus cabelos, com o formato do seu nariz e dos seus lábios, ao seu fenótipo como um todo. Todas as vezes que alguma ofensa for dirigida com esse conteúdo, trata-se de injúria racial”.
Saiba o que fazer?
Luiz Fernando orienta que o primeiro passo para quem é vítima desse tipo de crime é fazer o levantamento de provas, como prints de conversas, gravações e testemunhas. “Tudo isso serve para criar um lastro probatório para identificar o racista, localizá-lo, processá-lo para que haja a condenação. Também é preciso fazer um boletim de ocorrência e procurar um advogado ou a Defensoria Pública ou alguns dos coletivos negros existentes em Juiz de Fora. Esse procedimento vale tanto para casos de injúria racial quanto para racismo”, diz.
O representante da OAB ainda alerta que o crime de injúria racial está previsto no artigo 140, do Código Penal brasileiro, e prevê pena de um a três anos de reclusão e multa, no âmbito criminal. “Nada impede que o autor seja condenado ao pagamento de uma indenização por dano moral, no âmbito cível. E por ser cometido na internet, que é um meio de ampla divulgação, esse crime tem aumento de pena de até um terço”.
Ataques atingem honra, identidade e origem da vítima
Paulo Azarias, coordenador do Movimento Negro Unificado (MNU) de Juiz de Fora, lembrou que os casos de injúria racial têm explodido em todo o Brasil. “São ações incentivas graças a discursos de ódio e, principalmente, estimulados por essa pessoa que hoje ocupa a presidência da Fundação Palmares, que insiste em desclassificar a população negra, o que acaba incentivando essas ações criminosas, fascistas, de ameaças e, em alguns casos, até de agressão física e assassinato. Isso não é uma ação isolada. São ações arquitetadas por grupos neonazistas, que têm buscado, em um discurso falso, incentivar ataques contra população negra”.
Conforme Azarias, a primeira questão comum que aparece nos atos racistas, no Brasil, é a desumanização da pessoa negra e, no caso das mulheres, além da desumanização, há a transformação delas em meras figuras ligadas ao prazer. “Então, o impacto disso é deixar essas vítimas extremamente fragilizadas”. Na visão de Luiz Fernando, os impactos causados, tanto pela injúria racial quanto pelo racismo, têm efeitos diretos sobre a honra da pessoa ofendida. “Atingem sua identidade, sua origem, sua família, seu vínculo afetivo e sanguíneo, que são bens que demoram a vida toda para serem construídos, porque o processo de formação de identidade é um processo de reconhecimento.”
Necessidade de delegacia especializada
Como apontou Paulo Azarias, o Movimento Negro Unificado trabalha oferecendo o apoio que dispõe para as pessoas vítimas de racismo, mas, como ele enfatiza, é fundamental a criação de estruturas dentro do Estado, porque essa não é a função do movimento.
“É o Estado que tem que criar condições de garantir o bem-estar de todos. Em Juiz de Fora, já passou da hora de ter uma delegacia, como já existe em outras cidades, de combate a crimes raciais. Lembrando que o Supremo Tribunal Federal, recentemente, igualou a gravidade entre os crimes de injúria racial e racismo, que agora têm o mesmo peso. Neste sentido, o MNU defende a criação imediata de uma delegacia de combate ao racismo nos mesmos moldes da Delegacia de Mulheres”, afirmou Azarias, acrescentando que Juiz de Fora é uma cidade, extremamente, conservadora e racista. “São vários casos que acontecem, mas as pessoas, pela falta de uma estrutura, ficam sem condições de fazer um boletim de ocorrência, encontram dificuldades de apoio e proteção. Cabe ao Estado promover a segurança das pessoas que estão sendo ameaçadas”.
Azarias considerou que, “quando dizem que querem que voltemos para a África”, esse desejo é a revelação de um processo de continuação do racismo estrutural. “É importante ressaltar que a chegada dos negros neste território não foi voluntária, mas, sim, está inserida dentro de um processo econômico e extremamente violento. O Brasil foi o último país da América a fazer a abolição, mas ela ainda é incompleta, porque não houve nenhuma compensação para os negros em mais de quatrocentos anos de trabalho escravizado. Hoje, diante da continuidade desse racismo, existem vários mecanismos de exclusão da população negra, como no mercado de trabalho, na educação, na violência existente nas comunidades, onde a maioria é a população negra. Então, tudo isso, é consequência de um Estado racista e opressor.”
O MNU completa 44 anos em 2022 e tem contribuído nas proposições de superação do racismo. “Por isso, defendemos que Juiz de Fora, com mais de 500 mil habitantes, já passou da hora de ter uma delegacia especializada de crimes raciais”, concluiu.