Comércio da morte só parou na década de 80
A subnutrição, as péssimas condições de higiene e de atendimento provocaram mortes em massa no Hospital Colônia, de Barbacena, superando 60 mil óbitos. Registros da própria entidade, criada em 1903, apontam para 16 falecimentos por dia, em média, no período de maior superlotação, ocorrido a partir de 1960. As emanações fétidas exaladas da instituição atraíam urubus a todo instante. Pior: a disponibilidade de cadáveres acabou alimentando uma indústria macabra de venda de corpos usados para abastecer 17 faculdades de medicina do país, entre elas a UFMG, que adquiriu 543 corpos entre 1969 e 1980, e a UFJF, responsável pela compra de 67 cadáveres entre fevereiro de 1970 e maio de 1972. Em uma década, 1.853 corpos foram negociados por cerca de Cr$ 50 cada. O valor atualizado, corrigido pelo Índice Geral de Preços (IGP) Disponibilidade Interna da Fundação Getúlio Vargas, é equivalente a R$ 185 por corpo.
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Na remessa de 45 cadáveres para a Faculdade de Medicina de Valença, ocorrida entre 4 a 19 de novembro de 1970, os corpos de duas juizforanas estão entre os negociados por Cr$ 2.250 o lote. O lote corrigido pelo IPG-DI saiu a R$ 8.338,59. Em uma década, a venda de cadáveres atingiu quase R$ 350 mil, fora o faturado com o comércio de ossos e órgãos. O fornecimento de peças anatômicas, aliás, dobrava nos meses de inverno, época em que ocorriam mais falecimentos, se comparados ao período de verão. Em junho de 1971, a venda de corpos, feita pela instituição, atingiu 137 peças contra 64 negociadas em janeiro daquele mesmo ano.
O psiquiatra Paulo Henrique Alves, 64 anos, era estudante da Faculdade de Medicina da UFMG, em 1967, quando, aos 23 anos, teve contato com uma das remessas de corpos da Colônia usados para dissecação nas aulas de anatomia. "No primeiro ano de medicina, não tínhamos ideia da crueldade que estava por trás daqueles corpos. Às vezes, ao dissecarmos um pulmão, percebíamos a presença de tuberculose. Também chamava atenção a magreza daqueles cadáveres usados nas aulas de anatomia. Mais tarde, começamos a tomar conhecimento do que se passava naquele hospital. Aí comecei a ser critico de tudo aquilo", revela Paulo Henrique, recém-chegado ao Brasil da África, onde permaneceu em missão pela organização internacional Médicos Sem Fronteiras.
Quando os corpos começaram a não ter mais interesse para as faculdades de medicina, que ficaram abarrotadas de cadáveres, eles passaram a ser decompostos em ácido, na frente dos pacientes, dentro de tonéis que ficavam no pátio da Colônia. O objetivo era que as ossadas pudessem, então, ser comercializadas. "Interrompi o fornecimento de cadáveres, conhecido como comércio da morte, na década de 80, quando fui diretor da instituição pela primeira vez", informou Jairo Toledo, 62 anos, psiquiatra e atual diretor do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, que teve a última cela desativada em 1993.
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Negativos foram guardados por 45 anos
Luiz Alfredo, 77 anos, trabalhou durante 20 anos em "O Cruzeiro", principal revista do país do século XX, e só se rendeu a sua primeira máquina digital recentemente. O famoso fotógrafo, com mais de 500 trabalhos publicados, sempre gostou dos rolos de filme. Responsável por grandes coberturas jornalísticas, como a dos Filhos da Lua, sobre a comunidade de albinos de Alcântara, Parcel do Manuel Luis e Alberto da Veiga Guignard, importante pintor brasileiro, ele guardou, cuidadosamente, por décadas, milhares de negativos das matérias que ilustrou. Foi este hábito que permitiu trazer à tona a realidade da Colônia, cujas imagens feitas em rolos de 35 mm inspiraram, em 2008, a edição do livro de mesmo nome, viabilizada pela Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais.
O fotógrafo, acostumado a cobrir grandes tragédias, esteve em Barbacena, no início de abril de 1961, acompanhado do colega de trabalho José Franco e do então secretário de Saúde do governo Magalhães Pinto, Roberto Resende. Apesar de já ter ouvido falar sobre o que considerou "Sucursal do Inferno", Luiz Alfredo garante ter se surpreendido com a realidade. Segundo ele, as cerca de 300 fotos tiradas na instituição psiquiátrica, consideradas o maior conjunto de imagens já feitas no interior da Colônia, foram as mais fortes da carreira. "Muitas vezes, a gente sai para uma pauta sem saber o que vai encontrar. Foi o caso de Barbacena. Tive a sorte de estar lá e só precisei clicar a máquina, porque o horror estava ali. A gente lida com muitas tragédias, vê muitas mortes, mas aquilo não era acidente, era um crime, um assassinato em massa", comenta Luiz Alfredo, de Niterói (RJ), onde reside atualmente.
Segundo ele, o que acontecia por trás dos muros do hospital provocaram uma reação de choque. "Passei uma tarde inteira fotografando o lugar cuja farmácia, alguém nos disse, não havia sequer um comprimido para dor de cabeça. Nos pavilhões, vi muita promiscuidade. Passei por uma cozinha onde carnes eram cortadas no chão, e os urubus espreitavam por toda a parte. Vi uma porção de homens e meninos nus, gente demais num pátio só, o esgoto correndo a céu aberto, e eles bebendo aquela água. Isso é uma omissão política que não tem desculpa. Esse conjunto de imagens, não há dúvida, foi o mais dramático da minha carreira", confessa.
Apesar de receber várias ofertas de colecionadores e bancos de imagens estrangeiros, Luiz Alfredo desejava que o material histórico ficasse no país e contribuísse para a memória da psiquiatria brasileira. Em 2006, após grandes percalços, já que os negativos enviados para a Fhemig pelo correio ficaram perdidos por cinco dias no malote que estava entre uma carga roubada, a Prefeitura de Barbacena adquiriu o material, vendido por preço simbólico. As imagens passaram a integrar o acervo da Fundação Municipal de Cultura de Barbacena. "As matérias que nos tocaram, nos envolveram, a gente vive com elas. Esse material, como o do Guignard, queria deixar no nicho dele. Estive para vender as imagens para a França, mas preferi deixá-las no Museu da Loucura. Algumas dessas fotos mostravam a loucura dos maus-tratos, como se fossem cenas do nazismo. Aquilo foi o realismo flagrado. Daqui a cem anos, os meus bisnetos vão ver que eu registrei aquilo", comenta.
Acostumado a contar histórias, Luiz Alfredo emociona-se por fazer parte dela. "Sinto-me compensado, porque esse material ajudou a criar uma nova visão sobre a internação, sobre o modelo assistencial. Eu participei. Sou grato, porque é gostoso saber que pude ajudar alguém. Essas imagens se não estivessem comigo, poderiam ter desaparecido. Que bom ter guardado esses negativos."
Carnes usadas para alimentar os internos eram cortadas no chão em área aberta
Covas rasas expõem ossos de vítimas
"Dona, não entra aí, tem macumba", gritou André dos Santos, menino de 8 anos que mora em frente ao Cemitério da Paz. Sem portão, o que se vê é uma área de oito mil metros quadrados tomada por mato alto e detritos. Por entre as sepulturas, há preservativos usados e restos de latas de alumínio utilizadas no consumo de crack. Este é o local onde são mantidos os cerca de 60 mil mortos da Colônia. Enterradas em covas rasas, as vítimas de tratamento cruel e desumano não alcançaram respeito nem na morte. Seus túmulos vêm sendo depredados ao longo do tempo e nem mesmo os ossos revelados conseguiram reverter o descaso imposto aos excluídos sociais.
Construído junto com o Hospital Colônia, no início do século XX, o Cemitério da Paz, cuja área pertence à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais, está desativado desde o final da década de 80. A explicação do psiquiatra Jairo Toledo é que o terreno saturou. "Como ele não absorvia mais a demanda, nós o desativamos. O cemitério foi criado praticamente junto com o hospital, por isso, a leitura que faço é que os doidos, assim como os negros, não eram enterrados junto com os normais", acredita Toledo, ao referir-se à discriminação imposta àquela população.
Considerado um território de grande valor histórico, o Cemitério da Paz já poderia ter seu cenário modificado. No final de 2007, a Prefeitura de Barbacena, com o apoio do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha), lançou um concurso nacional para criar naquele espaço abandonado um Memorial de Rosas, unindo assim os dois símbolos da cidade: a loucura e as flores, já que o município tornou-se um dos maiores exportadores de rosas do país.
O objetivo do memorial, que ainda está no papel, é transformar o local em marco da história da psiquiatria mineira. O projeto vencedor criou uma passarela suspensa no terreno, preservando o passado. "O projeto conserva os túmulos e não tem interferência religiosa e nem jurídica. Ele propõe uma revitalização daquele espaço e conclui uma etapa dos porões da loucura. O governo precisa ser sensibilizado sobre a importância de o memorial ser concluído", afirma Toledo. Para viabilizar a obra, são necessários investimentos na ordem de R$ 3 milhões.