Quase cinco anos depois da trágica morte da professora Fabiana Filipino Coelho, 44, baleada no abdômen na manhã do dia 20 de novembro de 2019, quando fazia compras na véspera do aniversário do filho de 5 anos na parte baixa da Rua Marechal Deodoro, no Centro de Juiz de Fora, o sargento reformado da Polícia Militar Vanderson da Silva Chaves, 48, vai a júri popular por homicídio com dolo eventual. Para o Ministério Público, o réu assumiu o risco de matar ao ter efetuado o disparo que atingiu a docente em via pública, alvejando sua região lombar esquerda. A perda brutal da professora, muito querida pelos estudantes, causou enorme comoção na cidade, provocando várias manifestações contra a violência.
O julgamento do caso está marcado para começar às 9h desta quinta-feira (20) no Tribunal do Júri do Fórum Benjamin Colucci. A sessão será presidida pela juíza Joyce Souza de Paula. Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), no decorrer do dia estão previstas as oitivas de nove testemunhas, sendo quatro de acusação e cinco de defesa. “Está sendo apurado o envolvimento de um menor nos fatos, mas essas informações são sigilosas”, informa o TJMG, em relação ao então adolescente de 16 anos, que seria o alvo do disparo, após ter acabado de assaltar uma pedestre naquela manhã, roubando celular e dinheiro dela mediante ameaças com uma faca.
Conforme a denúncia, teriam ocorrido gritos de “pega ladrão”, e o sargento conseguiu derrubar o rapaz, mas acabou esfaqueado no braço esquerdo pelo infrator na tentativa de contê-lo. Já ferido, o PM acusado alega ter disparado para impedir a fuga do jovem, que conseguiu correr até ser novamente obstruído com um cone de sinalização utilizado por outro policial que estava junto com o denunciado. Nesse momento, o réu disparou com seu revólver calibre 32. No entanto, o tiro, em meio ao movimentado centro comercial, atingiu a docente, que lecionava no Instituto Estadual de Educação (Escola Normal), no Centro, e na Escola Municipal Clotilde Peixoto Hargreaves, no Linhares, Zona Leste. Ela chegou a ser socorrida, mas não resistiu e morreu na noite do mesmo dia.
A partir dali, a família de Fabiana foi obrigada a trocar as comemorações daquele aniversário pelo luto. “Tentamos, a cada dia, seguir a nossa vida, pensando no privilégio que foi tê-la do nosso lado. Mas a gente nunca supera”, desabafa o viúvo, Daniel Marchi, 44, em entrevista à Tribuna. “A expectativa é que os jurados adotem o entendimento de que houve dolo eventual por parte do responsável pela morte da Fabiana, condenando-o às penas que a lei estabelece. Sobretudo, que seja, na oportunidade, feita a justiça que os jurados também esperam que se realize dentre os seus familiares e amigos caso, um dia, passem pelas mesmas circunstâncias”, observa.
A defesa de Vanderson, por meio do escritório Sanches da Gama Advogados Associados, também comenta sobre o julgamento: “Estamos convictos da absolvição, uma vez que, por força do ordenamento jurídico pátrio, os jurados devem considerar como vítima o assaltante que esfaqueou o policial, tendo ocorrido o disparo somente após ter sido esfaqueado, agindo assim em legítima defesa em relação ao latrocida.” Ainda conforme a defesa, “o erro na execução é passível de punição no campo da culpa, e a tese será devidamente apresentada aos jurados.” Por fim, defesa e acusado “lamentam profundamente a morte da professora Fabiana”.
Embora a defesa tenha pugnado pela absolvição sumária do acusado, alegando legítima defesa própria e de terceiros, e pleiteado pela desclassificação para homicídio culposo, o juiz responsável pela pronúncia, Paulo Tristão, avalia que o laudo pericial expôs que as deformações acidentais encontradas no projétil extraído de Fabiana se apresentaram compatíveis com o impacto contra o corpo da vítima e não tinham características de “choque em anteparo duro”, não sendo factível a tese de “ricochete” da bala e reforçando os indicativos de que a vítima estaria na linha de tiro do policial. Diante da dúvida entre as teses de dolo eventual e culpa consciente, o magistrado indica a necessidade de julgamento, cabendo aos jurados a análise dos pontos controversos. “A dúvida sempre se resolve em favor dos interesses da sociedade, devendo ela ser dirimida pelo Conselho de Sentença”, conclui.
‘Fabiana nos faz falta todo dia’
O advogado Daniel Marchi, marido da vítima, conta como tenta se refazer da perda da esposa, com quem imaginou viver uma vida inteira, e não, pela metade. “Às vezes, até hoje, acordo de manhã com uma sensação de que foi um pesadelo. Não consigo acreditar, de tão insólito que é.” Segundo ele, os 14 anos vividos juntos foram de muita parceria. “Nós nos dávamos muitíssimo bem. Todos falavam que éramos um casal modelo. Ela gostava de tudo que eu gosto e vice-versa. Nos apoiávamos. Sempre foi um relacionamento muito maduro.”
O viúvo recorda, com carinho, momentos especiais. “Fazíamos leituras de poesia um para o outro, sempre. Ainda hoje vejo meus livros com anotações dela.” O filho do casal completa 10 anos em novembro. “Construímos uma família bonita. Tínhamos em nossa casa um verdadeiro refúgio. Lá é que éramos absolutamente nós mesmos.” A residência, agora, traz lembranças difíceis. “Fabiana nos faz falta todo dia. Abandonei Juiz de Fora desde o ocorrido e dificilmente consigo regressar à minha casa, na Zona Norte. Não decidi ainda se vou vendê-la, porque é uma decisão que cabe ao nosso filho também, que talvez ainda não tenha idade para pensar e compreender isso tudo.”
Por muitos anos, Daniel também abriu mão de sua carreira de professor universitário, porque não conseguia mais trabalhar na mesma área em que a mulher atuava. “Pedi licença da universidade e só voltei recentemente, por conta da necessidade da instituição. Recomecei do zero, voltando para a advocacia.” Ele comenta que o filho fala da mãe com carinho e saudade. “Mas ainda não conhece a fundo todos os detalhes da morte dela. Jamais contei, por exemplo, que o enterro da Fabiana foi no dia do aniversário de 5 anos dele, nem que a festa, tanto da escola quanto de casa, estava toda preparada no dia em que ela foi baleada.”
O pai segue cuidando do menino, com o apoio de seus pais e de sua irmã. “A mãe dela, minha sogra, jamais se recuperou desse episódio e até hoje encontra-se muito abalada. Idêntico quadro de abalo passa o irmão dela, que é professor da UFJF”, aponta o advogado, sobre como a morte de Fabiana impactou e afetou diretamente todos à volta dela.
‘A arma dela era apenas o giz’
Professora desde os 17 anos, Fabiana formou-se primeiro em informática no antigo Colégio Técnico Universitário (CTU), atual Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (IF Sudeste). Depois, fez bacharelado em Ciências e foi ser professora. Trabalhou em colégios como Santos Anjos e Vianna Júnior e também lecionou no município de Belmiro Braga, antes de passar em concursos da Prefeitura e do Estado. “Ela trabalhava muito. Pensava em se aposentar para a gente viajar”, comenta o marido, Daniel Marchi. “A arma dela era apenas uma: o giz. Sempre foi educadora.”
Passados quase cinco anos, o viúvo se prepara para o julgamento. “Estar às voltas com essas coisas me incomoda muito. Mas não tenho como recusar participar. Eu estarei lá, fui arrolado no processo pela promotoria pública. Preciso, no futuro, dar minha versão da história para o nosso filho, quando ele puder e quiser pesquisar e saber a respeito. Eu preciso fazer a minha parte, mas custa muito. Queria que houvesse um Daniel para lidar com essas coisas e um outro Daniel para cuidar do nosso filho e seguir com a vida. Mas isso é impossível, porque faz parte da nossa história. O melhor seria tê-la aqui, porque até hoje estou meio perdido. Tive episódios graves de depressão, me tratei… Até hoje não estou 100%.”
Para ele, não existe outra palavra para descrever o que aconteceu, somente “insólito”. “Como isso foi acontecer conosco? Por um erro absurdo de uma pessoa que, em tese, devia ser preparada para lidar com situações dessa natureza, e fez tudo errado. O Estado de Minas também tem responsabilidade e está sendo devidamente cobrado.”