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150 anos de imigração italiana: hospedaria recebia famílias em JF

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Cerca de um mês e meio de viagem em um navio com condições precárias para chegar em outro continente, depois de um oceano inteiro de distância, onde não se falava a mesma língua, nem tinha clima parecido ou os mesmos costumes. Pouco se sabia do país, antes da chegada aqui, mas este chamariz rondava as cabeças: “No Brasil se fazia riqueza”. Isso era o que dizia o avô de Lucínia Altomar Scanapieco, repetindo uma frase que muitos homens europeus, como ele, escutaram, antes de tomar a decisão de largar a vida que tinham antes em busca de um futuro melhor. A imigração italiana passou a ser estimulada pelo Governo na segunda metade do século XIX, quando, após a unificação do estado italiano, muitas famílias tiveram um processo de empobrecimento intensificado e precisavam de melhorias sócio-econômicas. O país verde-amarelo, por sua vez, tinha acabado de abolir a escravidão e tinha interesse em importar mão de obra europeia. Milhares de pessoas chegaram em 1874 e, ao longo dos 50 anos seguintes, mais de 1,5 milhões de italianos vieram para as terras brasileiras. Juiz de Fora foi justamente um dos pontos que recebeu esses indivíduos, através da Hospedaria Horta Barbosa, e as marcas que essas pessoas deixaram na cidade podem ser observadas até hoje.

Como explica o historiador e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) Marcos Olender, no Brasil, como um todo, o processo de imigração acontece na segunda metade do século XIX quando os empregadores se interessam em substituir a mão de obra escravizada. “Sabendo que na Europa existiam regiões onde havia desemprego, condições sociais e econômicas ruins, o Brasil investe na vinda desses imigrantes europeus”, explica. Quando chegavam ao país, esses imigrantes iam trabalhar em diversas áreas, e JF se tornou um lugar atrativo para os imigrantes que não tinham experiência no campo: “Muitos acabam vindo para a cidade, inclusive pelo atrativo exercido pelo lugar, que vivia um processo de desenvolvimento urbano muito forte, principalmente pelo dinheiro investido pelos chamados ‘barões do café’ e pela recente industrialização”.

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Chegada na hospedaria

Após chegarem pelo porto do Rio de Janeiro, os imigrantes italianos tinham um destino: a Hospedaria Horto Barbosa, em Juiz de Fora, onde permaneceriam por alguns dias decisivos, até que fossem registrados e encontrassem trabalho. Como explica o historiador, pesquisador e professor Rafael Bertante, essa hospedaria funcionou de 1896 até 1906 e chegou a registrar quase 25 mil imigrantes. “Além de obter o registro, o imigrante firmava contrato com quem precisava de trabalhadores, como na indústria ou lavoura. A função da hospedaria era durante um curto período de tempo”, explica. Como Olender destaca, também lá ocorriam problemas, como por exemplo uma infestação de cólera, que acometeu muitos desses hóspedes.

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A cidade que serviu como ponto de parada, no entanto, acabou deixando várias marcas – apesar de nem todos os imigrantes terem permanecido nela. “A cidade não tinha tanta necessidade de absorver esses imigrantes para si. Na verdade, como Juiz de Fora estava em uma localização estratégica dentro da Zona da Mata e de Minas Gerais, fazia o registro desses imigrantes e permitia que eles fossem trabalhar em Belo Horizonte, Rio de Janeiro ou São Paulo, que tinham esse foco na construção civil. Mas um número significativo de imigrantes optou por permanecer aqui”, explica Rafael.

Criação de associações ítalo-brasileiras

Antes e depois da Associação Cultural e Beneficente Ítalo Brasileira Anita Garibaldi, uma das que restaram desse período e que permanece em Juiz de Fora (Foto: Acervo/Felipe Couri)

 

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Em sua dissertação de mestrado, Rafael pesquisou sobre como, diante desse cenário de adversidades, os italianos conseguiram se estabelecer de forma tão definitiva no Brasil. Um dos principais pontos que ele destaca são as associações ítalo-brasileiras, que fizeram toda a diferença para que os imigrantes se estabelecessem na cidade. “Dentro dessas associações, eles se ajudavam de modo mútuo, entre si, e também criavam vínculos com a própria cidade. Internamente, conseguiam preservar a cultura deles”, explica. Nesses grupos, ele afirma que os indivíduos preservavam o idioma, trocavam receitas, dançavam e até praticavam esportes como a bocha. “Era tudo muito diferente do país de origem, mas essa sociabilidade foi um caminho para eles melhor se adaptarem à cidade e construírem vínculos com a população”, destaca.

A Associação Cultural e Beneficente Ítalo Brasileira Anita Garibaldi é uma das que restaram desse período e que permanece em Juiz de Fora. Ela foi originada da Associação Beneficente dos Irmãos Artistas, criada em 1908 para prestar ajuda aos recém-chegados, contando com suporte de pessoas que falavam a mesma língua e que tinham o interesse de manter a cultura. Lucínia Scanapieco, uma mulher aposentada e que atualmente desenvolve trabalhos memorialísticos, é neta de um dos fundadores desta organização, explica que um dos principais serviços oferecidos era prestar socorro aos associados no caso de doença e ajudar os mais necessitados. “Segundo seu estatuto, a associação era mantida por operários e somente admitia pessoas do sexo masculino, de qualquer nacionalidade, com ocupação honesta. Entre eles, havia uma variedade muito grande de profissionais: pintores, metalúrgicos, sapateiros e fogueteiros, entre outros.”

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Eles se reuniam em locais diversos da cidade, quando alguém cedia o espaço, até que em 1925 colocaram como prioridade construir uma sede, que ficou estabelecida em um terreno na Rio Branco. Apesar de o imóvel ter sido tombado em 1999, Lucínia explica que a associação atualmente enfrenta diversos problemas para sua manutenção: “Apenas voluntários estavam dando suporte para que a casa continuasse aberta, agora nem isso. Está muito difícil”. Outro exemplo de local que funciona como centro de memória desse processo imigratório, e que também se trata de um conjunto de associações, é a própria Casa D’Itália. Como esclarece Rafael: “Tem uma associação responsável pelo curso de italiano, tem um coral que canta músicas italianas, tem a capela que é dedicada a São Francisco de Paula, que é um santo típico da cultura italiana. É uma casa que abriga uma série de outras associações para preservar a cultura italiana e funciona hoje também como referência cultural, porque tem sempre exposições artísticas e eventos em geral”, conta. Também lá, no entanto, há dificuldade de manutenção – a Casa D’Itália foi colocada para leilão em 2020, mas após mobilização popular, o leilão foi suspenso e segue assim.

Casa d’Itália funciona como centro de memória desse processo imigratório (Foto: Felipe Couri)

Marcas culturais da imigração italiana

São mais de 25 milhões de brasileiros que, atualmente, descendem dos italianos, segundo dados da embaixada. Esse processo, que completa 150 anos este ano, deixou marcas em sobrenomes, culinária, arquitetura e arte. Como observa Rafael: “O reflexo disso é a gente perceber a quantidade de influência que temos na arquitetura de JF desses imigrantes italianos, lojas no Centro da cidade com sobrenome italianos, bancas de jornal e cartórios. Tudo isso é reflexo dessa imigração, que começou na virada do século XIX, mas que durante a segunda guerra mundial tem um novo boom”.

Mesmo com a passagem de várias décadas e a diminuição drástica desse fluxo no século XXI, o que fica, além das várias marcas culturais, são também as memórias criadas. “Tenho uma herança de princípios e de amor à pátria natal, porque mesmo com a distância, essas lembranças permaneciam com meu avô. Ele era apaixonado. Veio pra cá com 11 anos e, até a sua morte, com 81, fazia questão de manter o sotaque e ainda falar italiano às vezes. Mesmo tendo recebido a cidadania brasileira, para que os filhos tivessem melhores oportunidades, ele não quis perder sua naturalidade. Aprendi com ele que você tem que cuidar da sua família, ser benevolente com todos e se dispor a ajudar o próximo, porque esses são os valores que te dão honradez”, diz Lucínia.

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