“Pela manhã, eles pegam um pão com uma água preta amarga e falam que é café, e um saquinho de rosquinha. (…) Já na hora do almoço, vem uma “comida”, se é que pode chamar aquilo de comida. Sem gosto, um arroz duro e papado, o feijão parece uma pasta que, se jogar na parede, gruda. Isso quando não vem cheio de água. Chega a ser nojento. Comemos pois não temos outra coisa para comer.”
O relato é de um detento do Centro de Remanejamento do Sistema Prisional de Juiz de Fora (Ceresp), enviado à reportagem por meio de uma carta entregue à esposa no mês de novembro. No trecho, o detento descreve a qualidade das refeições fornecidas aos presos pela MC Alimentação, empresa atualmente responsável pela distribuição de marmitas na unidade.
A carta também aponta o longo intervalo entre as refeições, destacando as dificuldades enfrentadas pelos internos. “Na hora da janta é a mesma coisa, parece lavagem que estão nos dando. A última refeição é por volta das 16h30 e só nos alimentamos de novo no outro dia, às 9h da manhã. Ficamos 13 horas ou mais sem nos alimentar.”
Uma segunda carta também foi enviada à reportagem. No manuscrito, outro detento detalha uma série de desafios enfrentados no presídio, com ênfase na qualidade e nas condições da alimentação. “A respeito da comida, nossa última refeição é às 17h e vem azeda. Esses dias achei um arame no meio da comida. O café da manhã vem 9h ou 9h30, ficamos de 17h até 9h30 do outro dia sem comer.”
‘A nova empresa é, na verdade, a mesma’
Em Juiz de Fora, o Centro de Referência em Direitos Humanos se tornou um local de refúgio para famílias que recebem esse tipo de reclamação e não sabem que atitude tomar. A advogada do núcleo, Rayana Costa, afirma que queixas relacionadas à alimentação fornecida nas unidades prisionais são questões constantes que se arrastam há cerca de quatro anos.
As reclamações recebidas, afirma, incluem comida estragada, refeições servidas muito depois do horário estabelecido e alimentos em condições inadequadas, muitas vezes com resíduos de lixo. “Sempre que conseguimos contato com alguém dentro da unidade ou realizamos visitas, as reclamações são as mesmas”, afirma Rayana.
Apesar das tentativas de solução, como a troca da empresa fornecedora de alimentação, de Servir para Total em 2023, os problemas persistiram. A advogada relata que a mudança de empresa não resultou em melhorias, já que a Total foi substituída pela MC Alimentação, que assumiu o mesmo espaço e os mesmos empregados, sem alterações significativas, diz. “A nova empresa é, na verdade, a mesma”, destaca Rayana, questionando a efetividade da mudança.
A advogada relata que já questionou a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp) sobre a possibilidade de instalação de uma cozinha industrial dentro do próprio presídio. Com isso, além de aprender um novo ofício, o preso poderia ter remissão da pena e garantir a qualidade do alimento dentro da própria unidade. No entanto, os oficios enviados à secretaria, segundo ela, nunca tiveram retorno. “A falta de interesse do Estado é evidente, e a qualidade da alimentação é uma forma de penalização social e moral”, conclui.
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‘Situação insustentável’
Em contato com a Tribuna, a mãe de um jovem preso no Ceresp afirmou que a situação na unidade é “insustentável”. “Eu peguei e experimentei a comida da última vez que estive lá. A comida estava com uma cara péssima, mas eu experimentei, estava com um gosto azedo horrível, me deu até enjoo na hora.”
Ela relata ter presenciado uma situação em que agentes deixaram as marmitas abertas no pátio, permitindo que pássaros tivessem acesso ao alimento. “Tem preso falando em suicídio porque não aguenta mais a situação. A família já não manda comida, e a única que eles têm é essa, estragada. A comida que a gente leva é descartada. Gastamos dinheiro para levar algo para eles, mas não é permitida a entrada”, desabafa.
A esposa de um detento enviou à Tribuna uma foto de uma marmita que, segundo ela, é oferecida aos presos da unidade. Na imagem, é possível observar a pequena quantidade de comida, especialmente em relação à proteína. Quando questionada sobre as condições das refeições, a MC Alimentação forneceu outras fotos, nas quais as marmitas aparecem mais bem preparadas, com porções generosas de guarnição e proteína.
Dois anos e três empresas
As denúncias de má alimentação no Ceresp de Juiz de Fora não são recentes e já constam no Centro de Referência em Direitos Humanos da cidade há quase quatro anos. Durante esse período, pelo menos três empresas diferentes foram responsáveis pelo fornecimento de alimentos ao sistema penitenciário local, que inclui, além do Ceresp, a Penitenciária José Edson Cavalieri e a Penitenciária Professor Ariosvaldo de Campos Pires.
Em 2023, a Servir era responsável pela alimentação. Em março daquele ano, servidores denunciaram, durante uma audiência na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), as condições precárias do fornecimento de comida, com relatos de refeições contendo larvas, alimentos azedos e pães mofados. Pouco depois, em maio de 2023, a Total Alimentação assumiu o contrato.
Firmado para um período de 24 meses, válido até 2025, o contrato previa a entrega de refeições balanceadas e em condições higiênico-sanitárias adequadas para presos e servidores públicos. No entanto, menos de um ano após o início do serviço, a Total Alimentação se tornou alvo de ações da Comissão de Direitos Humanos da OAB devido a novas denúncias envolvendo comida estragada e com larvas.
Além disso, a empresa entrou na mira da polícia. Durante ações no local, foram apreendidos drogas, uma balança de precisão, 28 chips de celular, 19 celulares, 17 cabos USB, cinco pen drives, cinco fontes de carregadores de celular e duas resistências de chuveiro elétrico. Após o escândalo, o contrato entre a Total Alimentação e a Sejusp foi rompido.
MC Alimentação garante qualidade da comida
A MC Alimentação, empresa capixaba, assumiu a responsabilidade pela entrega das marmitas destinadas aos presos e agentes penitenciários em Juiz de Fora no dia 17 de julho, um dia após a rescisão do contrato com a Total Alimentação. Para garantir a continuidade do serviço, a MC Alimentação manteve o mesmo galpão localizado no Bairro Milho Branco, na Zona Norte da cidade. Inicialmente, a maior parte dos funcionários da Total Alimentação foi incorporada à equipe da nova empresa.
Diante das denúncias e questionada pela Tribuna quanto à qualidade dos alimentos entregues aos presos, o gerente da MC Alimentação em Juiz de Fora, Antônio Ramaldes, convidou a reportagem para uma visita à unidade da empresa na última segunda-feira (9).
O gerente assegura que o controle de qualidade é rigoroso, com fiscalizações semanais realizadas pela Sejusp e acompanhamento do transporte e da entrega das marmitas por fiscais da própria MC Alimentação. “Há um controle rigoroso da temperatura: as marmitas saem daqui com cerca de 79 graus e, em um trajeto de 20 minutos, não chegam a menos de 65 graus. A probabilidade de azedar é muito baixa”, explica.
Antônio afirma que o veículo utilizado para o transporte das refeições é totalmente revestido e passa por higienização após cada entrega. “Há uma série de requisitos estabelecidos em contrato. No caso do Ceresp, por exemplo, devo entregar as marmitas até as 16h30, se ultrapassar esse horário, sou multado”, ressalta. Ele também esclarece que os funcionários da MC Alimentação entregam as marmitas na entrada da unidade prisional, onde os próprios detentos que trabalham para a empresa são responsáveis pelo descarregamento. “Não realizamos a entrega direta dentro da unidade, pois há um limite de segurança que não podemos ultrapassar.”
Durante a visita à unidade, o gerente apresentou à reportagem registros fotográficos das marmitas prontas, realizados pela própria empresa. No entanto, a Tribuna não conseguiu verificar as marmitas produzidas no galpão, já que a entrevista foi agendada para o final da tarde, momento em que as refeições destinadas ao jantar já haviam sido enviadas às unidades prisionais.
“Preparamos as marmitas com todo cuidado e dedicação, seja para os agentes ou para PPL (pessoas privadas de liberdade). Para nós, todos são clientes. Nossa função é fornecer um produto de qualidade, até porque somos pagos para isso”, afirma Antônio. Ele reconhece que problemas podem surgir, como em qualquer empresa do setor alimentício, mas garante que há muito tempo isso não acontece. “Se, por acaso, algum problema for identificado na comida, asseguramos a reposição imediata. Apesar de o contrato nos conceder um prazo de até duas horas para realizar a troca, fazemos questão de resolver o mais rápido possível.”
Sejusp nega acusações
Em nota, a Sejusp afirmou que as denúncias recebidas pela Tribuna não correspondem à realidade. “Esclarecemos que todas as refeições fornecidas aos custodiados do Ceresp Juiz de Fora são devidamente acompanhadas por fiscais de contrato e órgãos de fiscalização. Qualquer possível irregularidade encontrada é imediatamente comunicada e, por força de contrato, as refeições são substituídas, sem ônus para o Estado.”
A secretaria ainda afirmou que os presos recebem quatro refeições diárias, sendo café da manhã, almoço, café da tarde e jantar. “O café da manhã é servido às 6h e não às 9h30, conforme pontuado”, ressaltou a nota. “Esclarecemos ainda que é de responsabilidade da empresa realizar toda a logística de distribuição até a entrega aos presos. Para isso, a empresa deve contratar mão de obra de presos garantindo assim o fornecimento e se responsabilizando pela entrega”, finaliza o órgão.