Em 2018, o Brasil registrou um aumento de mais de 140% nas cirurgias plásticas em jovens, de acordo com a Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP). O país é considerado o líder mundial no ranking de cirurgias nesse público e já chegou a ter quase 100 mil procedimentos por ano em pessoas com até 18 anos de idade. Dados da Academia Americana de Cirurgia Facial, Plástica e Reconstrutiva revelam, ainda, um crescimento mais recente das cirurgias focadas no rosto, que chegam a ser 56% das realizadas por ano. Após a pandemia de Covid-19, o número de procedimentos assim disparou, e foi chamada de “efeito zoom” por muitos especialistas. Como reflexo dessa tendência, no entanto, casos de procedimentos que dão errado e que levam a tragédias, como o caso da influenciadora Luana Andrade, que morreu durante uma cirurgia de lipoaspiração no joelho, levantam o debate do papel da pressão estética e das mídias sociais na influência sobre essa procura, e os riscos eventuais que esse cenário oferece.
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“Eu entrava no Instagram, por exemplo, e olhava 50, 60 fotos de pessoas que eu considerava melhores que eu. Gente que na maioria das vezes eu não conhecia. Sempre me comparei com corpos que eu achava perfeitos e sempre me senti feia”, conta A.S., de 24 anos. Crescendo em um cenário em que as redes sociais “estouraram”, isso fez parte de como ela conta ter se visto a vida inteira, e motivou sua procura por uma rinoplastia aos 21 anos. O resultado não a satisfez, e a recuperação, como ela conta, foi um dos períodos mais difíceis da sua vida, pois sentia dificuldade de reconhecer a própria imagem e sentia dores intensas. “Queria parecer com as fotos em que eu ‘mexia’, ajeitava para ficar com o nariz menor. Mas hoje eu entendo que a cirurgia plástica não funciona de maneira fácil assim”, afirma. Para ela, esse ponto foi uma mudança de chave para perceber que precisava ter uma outra relação com as redes – que também haviam desencadeado problemas de distúrbios alimentares.
Já A.T., de 45 anos, conta que algo a assustou nos últimos meses: sua filha, de 14 anos, começou a falar sobre procedimentos que gostaria de fazer no rosto. “Ela vê defeitos que nunca entendi. Na verdade, esses ‘defeitos’ dos quais ela fala são os traços genéticos da nossa família. Mas ela quer parecer com uma modelo”, afirma. Essa busca, chamada de dismorfia corporal, ocorre quando defeitos inexistentes ou imperfeições mínimas causam angústia na paciente. Foi o que levou R.S., de 29 anos, a buscar uma lipoaspiração cinco anos atrás. “Fiz porque odiava meu corpo. Durante um tempo, foi muito bom, fiquei satisfeita demais com o resultado. Mas não tive uma reeducação alimentar adequada, e logo comecei a ganhar gordura de novo, dessa vez em locais em que eu nunca tinha tido. Isso aumentou a minha insatisfação”, conta. Anos depois, ela entende que não devia ter feito aquela cirurgia tão jovem. “Eu não tinha maturidade e não precisava ter feito isso com o meu corpo. Mas eu me odiava muito.”
Padrão de beleza ‘rígido e perigoso’
De acordo com Marilho Dornellas, médico cirurgião e professor dessa área na UFJF, a pressão estética tem afetado a busca por cirurgias plásticas de maneira radical. “Tem sido cada vez mais comum que pacientes jovens cheguem ao consultório querendo uma cirurgia para a qual não têm indicação para fazer”, conta. Como ele percebe, isso está diretamente relacionado ao uso das redes sociais, e tem causado uma insatisfação que não era vista nesse público anos atrás, e também uma busca por um padrão de beleza rígido e perigoso. “Cada um tem o seu biotipo. A beleza é muito individual, e o que é belo para um, pode não ser para outro. O que está acontecendo é deixar essa beleza muito homogênea, com o mesmo volume de lábio, a mesma face sem expressão”, afirma.
Da mesma forma, David Sender, médico psiquiatra, afirma que, dentre os vários pontos em que as pessoas se comparam nas redes sociais, o corpo frequentemente se destaca como algo ainda mais emblemático. “Considerando que o número de curtidas, comentários e compartilhamentos representa uma forma de aprovação social, e certos tipos de corpos geram mais interação do que outros, é natural que esse aspecto se torne um alvo a ser seguido”, diz. Para ele, o padrão estético das últimas décadas, especialmente no contexto do corpo feminino, não apenas associa magreza à beleza, mas vai além – conecta magreza a sofisticação, inteligência, disciplina, sucesso, assertividade e superioridade. “Em outras palavras, a forma, o peso e a apresentação do corpo ultrapassam o conceito de corpo em si, invadindo também a identidade e o valor da mulher. Infelizmente, esse conceito distorcido é frequentemente aceito sem questionamentos”, afirma.
Saúde mental em tempos hiperconectados
A questão da saúde mental está totalmente relacionada com esse cenário, como David deixa claro. “Quando pergunto às minhas pacientes sobre seus pensamentos obsessivos e autodepreciativos em relação a si mesmas, a maioria responde: ‘Quero ser magra simplesmente porque acho mais bonito. Me sinto melhor’. É lamentável que, mesmo com tantas campanhas desafiando a validação de corpos anoréxicos como ideais, essa mentalidade ainda cresça além do nosso controle”, comenta. No livro “O mito da beleza”, como ele relembra, a autora Naomi Wolf conduz uma análise histórico-cultural, discutindo como as mulheres são influenciadas e moldadas por uma ideia restrita e muitas vezes inatingível de beleza, promovida pela mídia, publicidade e pela sociedade em geral.
“Surpreendentemente, essa ideia tem uma finalidade covarde: controlar as mulheres. Ao direcionar a atenção delas para uma imagem utópica e inatingível, as mulheres se tornam ocupadas demais para lidar com questões mais profundas sobre a vida, a sociedade e, claro, sobre si mesmas”, afirma David. Essa pressão, amplamente perpetuada, tem consequências nefastas para a saúde mental, como ele explica, pois nessa procura por um corpo impossível de ser “conquistado”, muitas se sentem não só feias, “mas também fracassadas e inferiores”.
Um estudo publicado em 2023 pela revista Body Image apontou que a exposição a vídeos de beleza no TikTok foi capaz de aumentar a vergonha e a ansiedade em relação à aparência, diminuindo a autocompaixão e elevando o humor negativo das usuárias. Como ele esclarece, outros trabalhos corroboraram essa tese, demonstrando que o tempo gasto em redes sociais parece estar altamente relacionado à insatisfação com a autoimagem. “A autoimagem não é um valor numérico como o tamanho de uma calça, mas sim a representação mental que a pessoa tem de si mesma, que pode ser distorcida”, pondera David. “Na prática, a escolha do conteúdo ao qual somos diariamente expostos tem potencial de afetar a autoestima e contribuir para quadros ansiosos, depressivos, anoréxicos, bulímicos, e assim por diante. E uma vez que a pandemia provocou um aumento expressivo do tempo gasto em redes sociais, não é difícil adivinhar as consequências emocionais que isso provocou – especialmente em crianças e adolescentes.”
Medidas para mudar os algoritmos
Para David Sender, à medida em que uma criança ou adolescente permanece nas redes sociais, é provável que o conteúdo ao qual são expostos se torne gradualmente a base para comparações. Mas o problema não seria tão grande se esses perfis seguidos não fossem idealizados, “frequentemente tratados com filtros, maquiagem, ângulos ou mesmo dedicação exagerada para atingir esses padrões”. Por isso, o que ele recomenda é primeiramente reconhecer o potencial negativo do conteúdo e tomar a iniciativa para modificá-lo. “Recomendo a todos os pacientes aplicar um filtro nas redes sociais. Ao mencionar filtro, não estou falando sobre os efeitos que alteram nossa aparência, mas sim sobre a eliminação de influenciadores e páginas que reforcem a sensação de insatisfação consigo mesmo. Ao realizar essa ‘faxina’ nas redes sociais, é possível reduzir os impactos negativos na autoimagem e promover uma experiência on-line mais saudável”, diz. Sobre esses conteúdos, Marilho acrescenta uma preocupação: “Recentemente, o Conselho Federal de Medicina liberou a revelação de imagens pré e pós-operatórias, e acredito que isso vai causar uma reviravolta nas redes sociais. Às vezes o resultado não é bem aquele, as fotos são trabalhadas. Isso causa muita controvérsia”, diz.
Como lembra David Sender, é crucial entender que quanto mais se interage com determinados conteúdos, mais o algoritmo da rede os entregará ao usuário. “Por que não evitar certas postagens e buscar ativamente outras que possam inspirar positivamente? Sejam vídeos engraçados, conteúdos saudosistas, viagens, decoração, história ou comida, qualquer opção é válida, desde que o perfil proporcione dois elementos essenciais: primeiro, não provocar a sensação de comparação, falta ou fracasso; segundo, estimular emoções positivas, como esperança, inspiração, orgulho e diversão”, recomenda.
Preparação para uma cirurgia
Para evitar frustrações ainda maiores e evitar riscos graves à saúde, Marilho orienta que a cirurgia plástica deve ser levada a sério e que cuidados devem ser tomados antes da operação. “É muito importante que a pessoa procure um profissional habilitado, que tenha experiência no ramo e não se deixe levar pelas informações das mídias sociais. Às vezes, o indivíduo tem um número de seguidores impactante, mas não tem experiência”, indica. Para ele, também é importante escutar o profissional argumentar sobre os casos que não têm indicação de cirurgia, que são precoces e que não vão deixar um resultado satisfatório. “Muita gente vai de médico em médico até que um aceite fazer. Isso não deve ser feito”, diz.
Em sua visão, com essa proeminência das redes sociais, muitas pessoas também passaram a banalizar a cirurgia plástica, com se fosse um procedimento pequeno ou pouco invasivo. “Não é nada disso, nós precisamos seguir todos os protocolos de exames pré-operatórios, de laboratório, pareceres cardiológicos e exames psicológicos de que às vezes os pacientes precisam. Uma cirurgia deve ser tratada com seriedade, e com um pós-operatório que precisa de muitos cuidados também”, diz.