
“Tira minha mãe de lá”. O pedido de um menino autista, de 8 anos, foi feito à tia na noite de uma sexta-feira, na véspera de Crislaine Aparecida da Silva Mello ser encontrada morta, aos 41 anos, vítima de feminicídio, em sua casa entre os bairros Sagrado Coração e Santa Efigênia, na Zona Sul de Juiz de Fora. A doméstica, que já trabalhou com segurança privada, havia conquistado há poucos meses o sonho da casa própria. Mas sua vida acabou de forma trágica no dia 11 de janeiro deste ano, quando ela foi atacada no banheiro e esfaqueada no pescoço pelo próprio companheiro. As câmeras do condomínio revelaram que o suspeito havia saído pelo portão por volta das 7h e retornado. Como o apartamento estava trancado por dentro, com uma chave na porta, a desconfiança de que ele ainda estava lá levou os policiais às buscas. Ao ser encontrado escondido debaixo da cama, onde costumava dormir com a mulher, o homem, de 37, confessou o crime à Polícia Militar (PM), alegando legítima defesa. “Ele não queria aceitar a separação, porque não tinha para onde ir”, lamenta Sônia Mara Oliveira, 55, tia que ajudou a criar Crislaine e que, agora, cuida do filho dela. “No dia do velório, ele quis dar o último beijo nela. Depois, ficava gritando na janela, pedindo para a mãe buscá-lo.”
Neste mês de mobilização nacional pelo fim da violência contra as mulheres, a Tribuna inicia a série de reportagens Agosto Lilás: Olhares contra a Violência. As matérias, com diversas abordagens sobre o tema, serão publicadas sempre às quartas-feiras, no site e no jornal impresso.
Até o momento, Crislaine foi a única vítima de feminicídio consumado em Juiz de Fora neste ano, segundo dados da Polícia Civil, que também registrou duas tentativas na cidade em 2025. Mas histórias da violência mais extrema que existe contra a mulher por razões do sexo feminino e no ambiente familiar, como a da doméstica, infelizmente, são reproduzidas diariamente Brasil afora. O país atingiu o maior número de feminicídios em 2024, desde o início da tipificação do crime, há 10 anos. O triste recorde deste delito de ódio, com 1.492 casos, foi divulgado no Anuário Brasileiro de Segurança Pública. A média de quatro mortes por dia revela a importância das campanhas de conscientização para reverter essa triste realidade, que não atinge só as mulheres, pois deixa filhos órfãos e destroça famílias.
Sete meses depois da perda da sobrinha, Sônia tenta retomar a vida, enquanto o acusado segue preso no Ceresp, aguardando julgamento. O casal teria se conhecido na internet e se relacionado por cerca de um ano. “Estou vivendo à base de remédio. O menino fica sempre lembrando. É difícil de esquecer.”
“Olhares” protegem vítimas e podem elucidar feminicídios
Diante da estatística alarmante, também são necessários meios de proteção às mulheres. As câmeras de segurança, cada vez mais espalhadas por vias públicas e condomínios, têm sido aliadas nesta luta, assim como outras tecnologias, como o próprio celular, que pode evitar, inclusive, a revitimização, por meio das provas. Ainda que nem sempre sejam usadas na prevenção a tempo de evitar os feminicídios, as gravações ao menos têm ajudado na elucidação de casos, como o da doméstica. “O ideal seria que toda possível vítima já se precavesse e fizesse uma instalação com câmera dentro do seu lar”, sugere o promotor Vinicius Chaves, que atuou no julgamento do feminicídio da psicóloga Marina Gonçalves Cunha, de 35 anos, ocorrido no dia 24 de junho, sete anos após ela ter sido estrangulada pelo marido e pai de seus três filhos dentro do apartamento onde moravam, no Bairro São Mateus, Zona Sul.
“O autor do crime está sempre um passo à frente do Estado. Se não fossem as câmeras, talvez o fato não tivesse sido desvendado, porque o corpo da Marina só foi localizado muitos dias depois, e o estado de decomposição atrapalha. O que estabeleceu nexo de causalidade entre a conduta do autor e a localização do corpo foi a prova produzida a partir da apreensão das imagens das câmeras instaladas dentro do prédio”, ressalta o promotor, sobre o vídeo que flagra o corpo da vítima escondido pelo acusado em um carrinho de compras, coberto com sacolas, na garagem.
O empresário Pedro Araujo Cunha Parreiras, 45, foi condenado a 34 anos e 7 meses na forma da pronúncia: homicídio qualificado por motivo fútil, meio cruel, feminicídio e recurso que dificultou a defesa da vítima, além da ocultação do cadáver. A pena, no entanto, poderia ter sido maior se o crime tivesse sido praticado após a Lei 14.994, de 2024, que tornou o feminicídio um crime autônomo – e não mais um qualificador de homicídio – passando a pena mínima de 12 para 20 anos de reclusão, e a máxima de 30 para 40 anos, a mais alta do Código Penal.
“Com o aumento da pena, não necessariamente os feminicídios diminuíram, porque o que envolve esses crimes é um fator cultural (sociedade machista e patriarcal) – como de que apenas o homem pode ter pluralidade de relacionamento -, atrelado ao baixo nível de desenvolvimento humano, educação e escolaridade”, destaca o promotor. Segundo ele, embora todas as classes sociais sejam atingidas, as mais baixas são mais afetadas pela violência contra a mulher, inclusive devido à dependência econômica. “Famílias com menos problemas financeiros tendem a ter menos problemas conjugais.” Além das câmeras, ele cita a importância das redes sociais e das conversas em aplicativos como possíveis provas de ameaças e de violência psicológica, por exemplo.
Mesmo com o endurecimento da legislação, Vinicius aponta a necessidade de alteração na Lei de Execuções Penais, para que a progressão de regime dos autores de feminicídio seja mais rigorosa, aumentando os prazos mínimos atrás das grades para a concessão de benefícios como saída temporária e livramento condicional. “Toda aquela distinção na fase de processos pode cair por terra na fase do cumprimento de pena”, alerta.
O que está por trás dos mais de 60 socos?
As bárbaras e assustadoras imagens de uma mulher, de 35 anos, sendo espancada com mais de 60 socos pelo namorado, 29, dentro do elevador de um condomínio em Natal (RN), viralizaram nas redes sociais na semana passada. A vítima ficou com o rosto desfigurado pelos golpes, desferidos em sequência durante pouco mais de meio minuto. A fisionomia forte do agressor só não escancarou ainda mais sua covardia do que a infeliz alegação de ter sofrido um “surto claustrofóbico”. Mais uma vez, graças à câmera do prédio – e à atitude do porteiro -, o agressor foi contido e acabou preso em flagrante por tentativa de feminicídio.
Para o psiquiatra David Sender, alegar doença mental, como no caso desse transtorno de ansiedade, não pode ser uma forma de se esquivar da responsabilidade. E, muito menos, de patologizar a violência. “A maior parte dos pacientes psiquiátricos não é agente da violência, é vítima. Durante uma crise, o paciente sente taquicardia, sudorese, agitação e um impulso desesperado para sair do local fechado.” Ao contrário, a agressão no elevador foi prolongada, dirigida e consciente.
Portanto, na opinião do especialista, não foi um surto. Foi cálculo. E qual padrão esse agressor repete? Conforme Sender, estudos sobre agressores em relações íntimas mostram que muitos carregam perfis de personalidade marcados por impulsividade, fragilidade narcísica, baixa empatia e necessidade constante de controle sobre o outro. “Ou seja, a violência, nesses casos, não é um acidente – é uma ferramenta para manter o domínio. E quando essa estrutura de identidade, relacionada à ideia de uma masculinidade tóxica, é ameaçada por uma mulher que se recusa a ser submissa, a violência não se manifesta como uma doença. Ela surge como resposta. Uma tentativa covarde de restaurar a imagem de si mesmo – mesmo que às custas de traumas físicos e psicológicos nas vítimas.”