‘Peito cortado por águas’: conheça as histórias do Bairro Santa Luzia
Moradores compartilham seus afetos e suas memórias do bairro que já foi fazenda
Maria Auxiliadora do Nascimento Costa, a Dora, abre as portas de sua casa com um livro em mãos. Antes mesmo de abri-lo, percebe-se que se trata de um livro bem usado: a cor laranja desgastada; as páginas constando manuseio recorrente. E, ao abri-lo, tem-se a certeza: trechos marcados em lápis, páginas amareladas. Dora sabe de cor o conteúdo de cada uma daquelas páginas e, de antemão, conta as histórias. “Ele narra o motivo de ter trocado o nome de Cachoeirinha, que era uma fazenda da época, para Santa Luzia, que era a padroeira. Tem o nome de todo mundo importante aqui para o bairro: do primeiro ônibus, das parteiras, dos trabalhadores, das ruas, das famílias, dos padres. Ih! Esse padre era muito bravo. Esse outro almoçava com a gente. Aqui era assim”. E completa: “Esse livro me salvou na pandemia, durante sua leitura e seu estudo. Afinal de contas, eu sou filha de Santa Luzia. E emprestei muito esse livro para que todo mundo conhecesse a história do bairro que me criou”.
Hoje, Dora tem 66 anos e, quando ela nasceu, o seu lugar já se chamava Santa Luzia. Por pouco, seu esposo, Geraldo Sizenando Costa, não pega o nome Cachoeirinha: ele nasceu no mesmo ano em que o prefeito Dilermando Cruz alterou a denominação do bairro, passando de Cachoeirinha para Santa Luzia, em 1948. Apesar disso, eles pegaram a essência de uma comunidade que se originou de uma fazenda, que levava o nome-primeiro do lugar. Esse nome, inclusive, é literal: atrás da fazenda existia uma queda d´água que deságuava no córrego Ipiranga, lá no final da Rua Ibitiguaia, a principal do bairro. Ela ainda existe, mas, na verdade, o contexto é outro. Diferente de seus pais, que nadaram – e muito – por essas águas, Victor Costa não conseguiu nadar por ali. Com 26 anos, já nasceu em um ambiente que é bem mais próximo do que é hoje. Apesar do crescimento, o Santa Luzia mantém uma série de coisas que fazem parecer, ainda, um pequeno bairro: aquele mesmo Cachoeirinha.
Os relatos são parecidos. Fernanda Lumen nasceu lá também, assim como Victor. E, como ele, seu pai também nasceu naquele Cachoeirinha. O que os pais contavam também é igual: um córrego em que se nadava; um chão de terra que subia assim que se batia o pé na bola; os brejos cheios de rãs; uma padroeira tão querida que se comemorava constantemente em festas nas igrejas, que reunia todo mundo. No imaginário desses dois, um desejo incontrolável, praticamente: “Meu pai me contava essas coisas e eu ficava nesse imaginário, de como era esse bairro, como era a infância dele. E eu, por algum tempo, quis ter nascido nessa época, para poder desfrutar um pouco dessas benesses, de ter vivido em um bairro que tinha riacho. Eu vejo lá perto da minha casa, tem uma cachoeira, eu ficava imaginando ela limpa, o riacho limpo, e eu via fotos antigas. Ficava pensando no bairro que já foi mais calmo para se viver”, confessa Fernanda.
Vontade de água
Fernanda e Victor tiveram esse desejo exposto, agora já adultos, de formas diferentes. Como a família de Victor é toda de Santa Luzia, cada integrante foi entrando em uma instituição do bairro, criando outras, a ponto de ele nascer nesse meio e não ver outra possibilidade a não ser dar continuidade a um costume que é tradição e herança. “Eu me tornei líder comunitário naturalmente e quis dar continuidade a isso de ajudar o próximo. Hoje, em todas as instituições comunitárias de Santa Luzia eu estou presente. Contribuo com o lugar onde vivo. Minha casa é essa e a minha segunda casa é o meu bairro. Isso me dá vontade de sempre fazer o melhor: um bom lugar para os antigos e para os novos”. Atuante na comunidade, já entrou, sim, no rio, mesmo poluído, mas foi para tentar minimizar os estragos das enchentes que, sazonalmente, acontecem no Santa Luzia. E ele não se arrepende.
Fernanda já entrou no córrego também, mas foi para pegar a bola que caia quando brincava por lá. “Eu observo que fui a última geração que brincou aqui na rua. E eu brinquei muito mesmo”. Esse rio que corta o lugar que cresceu a partir dele, impacta a moradora ainda hoje. Artista, foi o Santa Luzia o primeiro lugar a receber um grafite seu. “O grafite tem muito isso de procurar os lugares onde a arte vai aparecer mais. Quando eu comecei a estudar o grafite, eu trouxe muito ele para cá. Tem várias paredes que passaram por mim, lugares que eu pintei várias vezes. Eu pintei a pracinha, pela primeira vez, em 2008. Depois, eu renovei e renovei de novo, e a gente ainda quer renovar mais uma vez”. Suas artes estão espalhadas por várias paredes e telas na cidade. Mas, em todas elas um elemento, vira e mexe, retorna: a água. “Eu falo muito da água porque ela é fluidez, ela leva as coisas embora, ela renova. Eu sou muito marcada pelo córrego do bairro.”
Durante a pandemia, ela teve um projeto contemplado por um edital da Funalfa. Nele, propôs, junto com outros amigos, que cada um fizesse uma arte inspirada na comunidade. “Eu, por exemplo, coloquei uma mulher com cabelo de riacho”. Apesar de ter nascido no Santa Luzia e ter a história de sua família ligada ao bairro, foi na pandemia que a relação se estreitou. “Toda manhã eu acordava, com minha filha e meu esposo, e ia passear, cedinho, pelo bairro. A gente ia no mais alto do bairro vendo as situações. Porque a nossa rotina maçante é de sair cedo e voltar tarde, e você perde a rotina do bairro, perde o convívio. A pandemia me trouxe muito para o bairro. Eu senti o bairro mesmo, o crescimento, o que mudou”. E a montanha e o pôr do sol passaram a ser inspiração também nos trabalhos de Fernanda. “Eu sempre amei a vista, e quando você chega um pouquinho mais alto, vê o mar de morros, os horizontes”. Esse olhar, inclusive, um olhar antropológico, é trabalhado por ela dentro da escola: ela, que faz faculdade de antropologia, passou em uma bolsa de docência e dá aula da escola onde estudou, no bairro. “É interessante voltar como professora. É mais um ponto dessa história com meu próprio bairro. Eu me sinto bem em fazer algo por um espaço que já fez algo por mim.”
O trabalho do olhar e do pertencer
Para Fernanda, o mais bonito de tudo isso são mesmo as pessoas, por mais clichê que possa parecer, é o que mais faz sentido em um lugar que, como Victor fala, “é um bairro com características de comunidade”. O convívio entre os moradores é coisa preciosa: um ajuda o outro mesmo. Tem feira sempre. Tem capoeira todo primeiro domingo do mês, na praça, que ainda sedia os mais diversos eventos. Isso, para o líder comunitário, é fruto de um lugar que mantém, praticamente, as mesmas famílias, desde o começo. “E a gente vai cultivando e fazendo a mesma coisa que era feito antes, mantendo essa cultura, essa tradição de ajudar o próximo, ser um bairro com característica de comunidade. A feira, por exemplo, a gente vai e fica umas três horas só conversando, e isso vai gerando amizades novas. Quem está aqui não quer sair por isso”. Ele, por exemplo, afirma que seu destino é ali mesmo.
E é fruto dessa relação que Fernanda encontra as belezas. “Eu acho que o convívio com as pessoas traz uma beleza. Às vezes, você está em um local que não se sente tão à vontade, pode ser o mais estranho, quando se chega pela primeira vez, mas com as pessoas, com o convívio, você acaba gostando. Às vezes, a gente vai em uma região muito periférica que não é muito bonita, no sentido estrutural, mas você acha lindo, se sente confortável ali porque aquele ambiente passa uma coisa gostosa, você se sente acolhido. Eu acho que isso é importante. A gente tem que saber treinar o nosso olhar.”
Esse olhar, por exemplo, pode ser para dentro mesmo: para as memórias e as histórias que cada um viveu e compartilhou no Santa Luzia. Victor, por exemplo, tem uma lembrança carinhosa com as cocadas de sua avó, nos aniversários, que uniam os moradores que tinham sua idade e lotavam sua casa. Além disso, as brincadeiras nas ruas, o soltar pipa livremente. Ele se agarra a uma lembrança de um bairro acolhedor para que isso se mantenha nos dias de hoje, para que todos se sintam acolhidos, como ele foi. Fernanda, por sua vez, recorda esses episódios, inclusive os que seu pai contou, com sua filha, de 4 anos. “Eu gosto muito de conversar com ela. E uma das coisas é que, quando eu passo em algum lugar, eu conto o que era antigamente. Quando eu tinha sua idade aqui era tudo mato”, ri. “Falo o que meu pai fazia também, que ele nadava no córrego. E eu faço isso pela cidade inteira. Dando um panorama histórico das mudanças. A história serve para entender o presente e trabalhar o futuro. Eu gosto muito do aspecto histórico das coisas, de ver o que já passou pelo lugar. E contando essas histórias, eu conto a história da minha família e a minha própria.”
As referências que vão sendo criadas são fruto desses trabalhos coletivos. Fernanda é Pequena Lumen, nascida e criada no Santa Luzia, como é conhecida. Victor é o Victor de Santa Luzia. “O bairro é a minha referência. Tudo meu é essa referência, o de Santa Luzia. E eu puxo saco do meu bairro mesmo. Eu não falo mal do bairro de ninguém, mas, com certeza, o meu é o melhor. É tudo para mim hoje: minha família, minha vida profissional. É tudo. Apesar dos momentos, da chuva e do alagamento – a gente inclusive espera que tenha melhora. Mas, apesar disso tudo, ainda é um lugar bom para se viver.”
Santa Luzia em música
Fernanda e Victor são dois jovens já saudosos de uma Cachoeirinha. Dois jovens que seguem no bairro atuando pela manutenção de uma tradição ensinada e vivida. São duas pessoas, mas dá para perceber que esse sentimento saudosista e de desejo tanto de aprofundamento na história quanto de encantamento por Santa Luzia é compartilhado de forma geral, pelas mais de 20 mil pessoas que moram por ali. Dudu Costa, músico e professor juiz-forano, tem suas raízes localizadas no bairro. E escreveu uma música, com melodia de Roger Resende, que sintetiza tudo isso, já pelo nome, “Cachoeirinha”: “Sempre em tuas ruas eu hei de cantar, percorrer/ Com a paixão de teus velhos lembrar, reviver/ Pois na memória a vida se refaz/ E parece que tempos atrás/ O domingo é que era domingo/ Avenida Ibitiguaia não és mais aquela, já não és/ Onde os meninos mandavam no chão com seus pés/ Contos e glórias eu sei que têm lá/ Tudo quanto é possível guardar/ No peito cortado por águas/ Hoje findas/ Santa Luzia das rodas sem par/ Quem te ouviu sob a luz do luar/ Não esquece esse samba que faz/ A ciranda do tempo girar/ E num breve momento verei/ Meu avô num pandeiro de rei/ Comandando o velho batucar/ Nos quintais e terreiros de/ Sempre em tuas terras eu hei de viver e amar/Devotamente os teus bares correr, celebrar/ Cachoeirinha fazenda de chão/ Tua gente tem sonhos nas mãos/ Alegria e tristeza sem mágoa/ E parece que tempos atrás/ O domingo é que era domingo”.