A trilha sonora é simples. Mas ali, naquela sala de aula, “Alecrim”, “Anna Júlia”, “Borboletinha”, “Vamo pulá” e tantas outras canções que a gente reconhece facilmente, e vez ou outra se pega cantarolando, ainda que mentalmente, são mais lindas do que sua trivialidade jamais nos permitiu perceber. Não que elas sejam executadas por músicos de talento mundialmente reconhecido, mas a beleza vem de um padrão de qualidade irrefutável, o reconhecimento daquilo que é feito com o coração. Há cerca de um ano, jovens integrantes da Fiaine (Fundação para Integração e Assistência Integral do Indivíduo com Necessidades Especiais) se reúnem com o músico Léo Teixeira todas as sextas-feiras para uma oficina em que tocam instrumentos variados, cantam, dançam, conversam e se divertem. “Minha esposa é psicóloga e trabalha na Fiaine…”, começa a contar Léo, mas é interrompido por Carolina Sosa, 18 anos, uma das alunas mais animadas com a oficina. “Ela é bonita!”, ao que o músico sorri e completa. “Sim, ela é linda! Mas então… eu frequentava o local, convivia com o pessoal e propus fazer um dia de música.” O projeto foi uma evolução do ‘Doa Som’, iniciativa criada pelo músico, que conserta instrumentos quebrados e doa a crianças e adolescentes carentes, ministrando oficinas para eles.
Segundo Léo, os jovens que participam da oficina fazem parte da “comunidade” da Fiaine, que corresponde ao grupo que já concluiu a educação básica, mas não tem amplas oportunidades de ingresso no mercado profissional. “Eles ficam em uma situação intermediária, por isso a Fiaine tem atividades de integração social diversas”, explica Léo, que não considera o projeto uma iniciativa exatamente de musicoterapia. “Eu não sou musicoterapeuta. Nem professor de música, no sentido preciso, eu sou. Mas venho de coração aberto e faço o que consigo e o que sei. Claro que sei que tenho limitações por conta de não ter formação específica, mas tenho muita boa vontade, e acho que isso supera as barreiras. Eu trago alegria com a música, e isso é um passo pequeno, mas de um significado enorme”, observa.
De fato, os sorrisos emanam da roda em que os instrumentos são revezados. Chocalhos, cornetas, bongôs, agogôs, pandeiros e instrumentos feitos com materiais recicláveis passam pelas mãos de todos, que não se furtam em participar de qualquer canção que Léo puxe ao violão. “Quando chega sexta-feira, a Carol fica ansiosa para que chegue a hora da aula de música. Acho que foi uma transformação muito importante na vida destes jovens, porque eles podem se expressar pela música, e além de eles interagirem em um grupo, a individualidade deles também é valorizada, porque cada um tem seu momento de cantar e tocar, e os colegas assistirem”, avalia a estagiária de psicologia Natália Mendonça, que há dois anos acompanha Carol. “O repertório musical dela também cresceu, nós duas sempre cantamos, mas agora ela conhece mais músicas e instrumentos.” De fato, Carol assumiu o microfone e cantou de tudo em sua vez, de “Primavera”, de Tim Maia, a “Campeão”, clássico hit dos amantes do futebol, que versa sobre ir ao Maracanã para ver o time que é fã. No caso de Carol, o Flamengo.
Para Dulcéia Figueira, avó de Nicole, 16 anos, uma das maiores conquistas com a oficina de música foi a socialização com outros colegas. “Além do conhecimento de vários instrumentos a que a maioria deles não teria acesso, acho que eles ganham por viver essa experiência conjuntamente. A Nicole gosta muito de música, toca teclado, pandeiro, chocalho…”, falava a avó, quando foi surpreendida por um beijo de Nicole, que retribuiu, antes de prosseguir. “Acho que é um estímulo para a criança, para o sua capacidade em várias áreas, e uma orientação para os pais. E é mais bonito ainda que seja um trabalho completamente voluntário.”
Música contribui para o desenvolvimento integral
Depois de um ano tendo encontros semanais com os jovens da oficina, Léo presenciou, além da injeção de autoestima e autonomia dos alunos, alguns marcos no desenvolvimento motor e cognitivo deles. “Uma das meninas tinha a mãozinha muito atrofiada, não se abria para tocar o pandeiro. Hoje, vejo que ela toca com a mão aberta. Outra aluna, desde que entrou, não falava. Em seis meses, eu nunca havia ouvido sua voz. Até que um dia, no refrão de ‘Anna Júlia’, ela começou a cantar. Eu até parei, impressionado. Isto é lindo de se ver, não tem preço”, diz o músico.
Segundo a musicoterapeuta Luciana Steffen, realmente a música traz benefícios para o desenvolvimento integral de pessoas com deficiência. “Ela é capaz de promover o equilíbrio emocional, aumentar a autoestima, a autonomia e a motivação. A música trabalha a razão e a emoção, e aciona a mesma área do cérebro ativada pelo prazer da alimentação, do sexo e das atividades físicas, trazendo um significante benefício para o bem-estar físico e mental. Além disso, a vontade de tocar um instrumento instiga a superação das dificuldades e estimula todo o desenvolvimento motor”, explica a especialista. “O campo motor é trabalhado com o ritmo, movimentos associados à música, dança, instrumentos musicais e expressão corporal, estimulando a coordenação motora e o tônus muscular”, completa.
Sorrindo, Léo Teixeira diz que não se vê como um voluntário ou alguém que presta um serviço. “Acho que é uma troca. Para mim, o aprendizado é gigantesco, muito maior do que o deles. É um exercício de amor mesmo. A gente vive em um mundo tão corrido, e as pessoas têm tendência ao distanciamento, a se se manter em relacionamentos mais superficiais. Quando venho para cá, esse tempo me alimenta. É um pequeno passo que é bom para quem faz, é bom para quem recebe, é simples. Desde que começamos, só vi coisa boa acontecendo. Sou muito feliz por poder fazer isto.”