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‘O escritor não é um ermitão, mas alguém que está passando pelos mesmos processos sociais de seus leitores e de suas leitoras’

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    Estreia de Daniel Giotti no gênero conto, “Tempos estranhos e outros clichês” apresenta contos que refletem sobre pandemia, política dos últimos tempos, literatura, cinema e música (Foto:Divulgação)

Estou conhecendo o livro “Tempos estranhos e outros clichês” (Varanda, 200 páginas), do escritor Daniel Giotti, e abro, acidentalmente, na página 177, onde o título do conto impede que eu siga com minha tarefa: “Drummond encontra Pessoa”. O autor juiz-forano, um “contista fingidor”, como ele mesmo se intitula nessa narrativa, une esses dois grandes nomes da literatura, um brasileiro e um português, em um café na Praça Mauá, no Rio de Janeiro. Era meia-noite, mas eu precisava saber como se desenrolaria esse colóquio inédito, regado a poesia.

“Assim que resolvi escrever sobre um encontro entre Drummond e Pessoa, cogitei os dois falando em versos, algo que sei que eles não fariam, pois não eram assim afetados, mas que seria interessante pela ironia que identifico em ambos. Os dois, a seu jeito, me pareciam grandes brincalhões com os amigos e em família, apesar de melancólicos e taciturnos, sobretudo em suas poesias. E, durante a escrita, procurei em alguma fonte a possibilidade de um ter lido o outro, para achar alguma verossimilhança. Talvez quem leia nem precise disso, mas a escrita fica mais sólida assim”, conta Giotti, cuja inspiração remota para sua escrita é um texto em que o também escritor Affonso Romano de Sant´Anna relata seu primeiro (quase) encontro literário com o poeta itabirano. “É uma brincadeira que adorei fazer em torno de duas figuras que deveriam ter se encontrado, como quem é daqui de Juiz de Fora e gosta de literatura esperava um encontro entre Pedro Nava e Murilo Mendes, por exemplo.”

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Esse novo livro de Giotti é dividido em duas partes: “Tempos estranhos” e “Outros clichês”. É na segunda que nos deparamos com “Drummond encontra Pessoa”, pois nela estão concentrados os textos que dialogam com a paixão que o autor nutre por literatura, além de música, cinema e ciências sociais. Já a primeira apresenta contos produzidos durante o período em que o mundo viu o coronavírus se espalhar. São narrativas que tratam de assuntos relacionados à pandemia e, também, à política dos últimos anos. A exceção fica por conta de ‘Rio de Poesia’, último texto da primeira seção. O autor diz que esse conto é “quase um respiro do escritor rumo a um lirismo mais pungente.”

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Autor de várias obras, professor e Procurador da Fazenda Nacional, Giotti estreia na publicação de contos com “Tempos estranhos e outros clichês”. Sua influência literária vem de contistas, como Machado de Assis, Jorge Luis Borges, Clarice Lispector, Sergio Sant’Anna e Chico Buarque.

Marisa Loures: “Tempos estranhos e outros clichês” é seu primeiro livro de contos. O que você espera despertar no leitor com seus escritos?

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Daniel Giotti: Quem escreve sabe o privilégio que é ser lido e, ainda, que a obra deixa de ser sua, assim que publicada e quando chega às mãos dos leitores e das leitoras. O livro sempre foge ao domínio do escritor, o que não impede que ele mantenha suas expectativas quanto a como será recebido. Assim, espero que quem leia o livro encontre encantos e estranhamentos nos contos, porque isso replica a vida de cada um de nós, ao menos para quem está atento ao mundo a nossa volta. Sempre que consigo ter essa experiência lendo, sinto que a literatura funcionou para mim. Por isso, quero que os leitores e as leitoras tenham a mesma experiência que julgo enriquecedora e transformadora.

E por que escrever sobre os nossos clichês?

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Não foi uma escolha consciente escrever sobre clichês, pelo menos não foi inicialmente. Muitos dos contos foram escritos durante a pandemia e eu estava descrente de que ela mudaria nossas atitudes, crenças e hábitos, fazendo a humanidade melhorar. Durante o processo de escrita, percebi que os personagens e as cenas que surgiam seguiam um fio condutor, tinham um elo. O elemento comum era essa eterna propensão humana a repetir o passado, seus erros e acertos, dentro de um universo de clichês. Afinal, nossos dramas e como reagimos a eles são tão diferentes de como foram representados na literatura da Antiguidade Clássica ou em Dante, Camões, Shakespeare ou Machado de Assis?

E seu livro nos faz refletir sobre algumas questões delicadas que vivenciamos. Pandemia, teletrabalho e política, por exemplo. É dever do escritor estar atento ao que acontece em seu tempo?

Continuamente me pergunto se a literatura tem um dever, se o escritor ou a escritora precisam estar atentos ao tempo em que escrevem. Como leitor, procuro todo tipo de literatura, a mais ou menos engajada, a mais ou menos filosófica, a mais ou menos psicológica. Por isso, mais por minha experiência como leitor, tendo a responder que não, que não existe obrigação do escritor ou da literatura de estar atenta ao que acontece no seu tempo. Por outro lado, porém, estou convicto de que é impossível, sobretudo nesta sociedade nossa de redes sociais, de velocidade das informações, de digitalização de todos os ambientes da vida, não sermos influenciados no que lemos e escrevemos pelos acontecimentos de nossos tempos. O escritor não é um ermitão, mas alguém que está passando pelos mesmos processos sociais de seus leitores e de suas leitoras.

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Capa da livro (Foto: Divulgação)

O conto “A pensionista” traz a história de Elba. Ela “se gabava de ser filha de general da época gloriosa das Forças Armadas”. Tinha as mesmas convicções do pai, que se lembrava com saudosismo dos tempos de regime totalitário. Elba se mostrava contrariada com tantos direitos sociais adquiridos pelos mais pobres, mas, ironicamente, passa a usufruir uma pensão vitalícia. Ela se sente muito bem “representada pelo novo governo presente”. A leitura que faço é que Elba é exemplo do brasileiro e suas contradições…

Elba é exemplo da contradição de um tipo de pessoa, de um tipo de brasileiro, que não consegue olhar para si no espelho e ver seus privilégios refletidos, mas sente num retrovisor como ameaça a ascensão social de outras pessoas, de outras classes sociais. Isso é humano, demasiadamente humano, se formos invocar Nietzsche, um autor maldito e que tinha lá suas muitas contradições e traços de conservadorismo também. Embora algumas das personagens possam soar mais caricatas, e tenha certeza de que replicam pessoas de carne-e-osso, com quem nos deparamos no cotidiano, me interessa mais tentar entender as razões de uma pessoa pensar assim. Em outro conto, “Auriverde pendão de minha terra”, mostro Dona Deia, a contradição em si sob aparência de ser uma engajada militante de esquerda, mas que com seus privilégios também explora um conterrâneo sem instrução e lhe dá lições de política.

O gênero conto, por sua natureza e extensão, precisa dar seu recado em poucas páginas. Certo dia, li uma entrevista em que uma contista refletia sobre isso. Ela dizia que o romance seria uma maratona de resistência. Uma maratona que permite pausas e cãibras durante o caminho. Já o conto poderia ser comparado a tentar correr uma corrida de 100 metros com uma corrente amarrada ao pescoço. Concorda com essa definição de conto? Como foi a experiência de produzir essas narrativas curtas?

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Tenho romances e novelas inacabadas, logo, ainda me falta fôlego para maratonista. Às vezes um ou outro conto precisa de um retoque ou de ser reescrito, mas isso geralmente não dura anos, como no caso de novelas e romances. Então, acho que concordo com essa definição de conto. Em muito menos páginas, às vezes, em uma ou duas, como Dalton Trevisan e Sérgio Sant´Anna nos mostram, eles conseguiam descrever um personagem, uma cena e ter um clímax, e eis o conto ou micronarrativa, não importa o nome. Sobre a experiência de produzir micronarrativas, digo que é muito prazeroso ver um resultado mais rápido e creio que elas sejam também adequadas para os nossos tempos, em que as pessoas querem algo mais rápido também para ler.

Leia também: ‘As crianças precisam se voltar para o rústico e para o bucólico’.

 

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