Para o escritor José Renato Amorim, “é sempre oportuno lembrar que há uma criança dentro de todos nós.” E é por isso que ele segue publicando livros infantis que tenham a proposta de encantar não só os leitores mirins, mas também os mais crescidos. “João Camaleão” (Paratexto, 24 páginas), obra que acaba de ser lançada com apoio da Lei Murilo Mendes de Incentivo à Cultura, é mais uma aposta dele nessa direção. O público-alvo são crianças de até 10 anos, mas o poeta garante que “os adultos também poderão se deliciar em suas páginas”.
Mas quem é esse João Camaleão? “João é um nome comum, mas de pronúncia forte. Camaleão, como sabemos, é um pequeno animal que muda de cor conforme o ambiente. A fusão de ambos revela que, mesmo o mais forte, está sujeito às interferências do ambiente e são emocionalmente afetados. João é a criança que experimenta uma infinidade de emoções e precisa lidar com elas no cotidiano. Um menino fazendo sua jornada existencial e provando os dissabores e a felicidade. Porém, João pode ser também eu, você e o leitor”, comenta Amorim, ressaltando que a jornada pelas páginas da obra é bem lúdica e poética.
Segundo o autor, o livro foi produzido enquanto ele fazia uma pós-graduação em literatura infantil, e a inspiração veio durante um estudo das cores. Dessa forma, elas são fundamentais nessa aventura, que ele criou em diálogo com as ilustrações de Alberto Pinto e Carolina Magalhães. Quanto às cores, elas ficaram por conta de Julliana Jacome. Aliás, importante mencionar que foi também no curso que brotou a ideia de contar essa história em forma de versos.
Marisa Loures – O seu livro foi produzido durante sua pós-graduação em literatura infantil, e a inspiração veio quando você fazia o estudo das cores. Conte-nos como foi essa experiência. O que você aprendeu nas aulas de cores, com o professor Camilo Martins, e, depois, nas aulas de poesia, com o escritor Leo Cunha, e que foram levados para “João Camaleão”?
J.R. Amorim – Professor Camilo abriu meus olhos para o efeito das cores na vida das pessoas. Trabalhar cores com as crianças contribui para o desenvolvimento cognitivo delas, ajuda na assimilação de conceitos e até em questões relacionadas à identidade cultural. Tem ainda o efeito de estimular a percepção e a criação de conexões. Cor é vida e descoberta, sobretudo. Já Leo Cunha é hoje uma celebridade no mundo da literatura infantil. Um talentoso escritor que me permitiu perceber, de forma contundente, a falta da poesia no mundo e na vida das crianças. Assim, utilizei a linguagem poética no livro, acreditando que as crianças merecem o acesso à poesia. Na contracapa do livro, consta um texto de Dilan Camargo que resume bem a questão: “Se nós, adultos, já desistimos de uma visão poética da existência, não temos o direto de negá-la às crianças”.
– Sempre que leio o que você escreve para crianças, tenho certeza de que sua intenção é ultrapassar o simples entretenimento. O que você quer provocar no seu leitor com “João Camaleão”?
– A proposta é literária, sem pretensões “didadizantes”. Como nos legou Rubem Alves: “o escritor não escreve com intenções didático-pedagógicas. Ele escreve para produzir prazer”. Portanto, a premissa é levar o lúdico e a poesia. No entanto, lendo João Camaleão, especialmente no mundo pós-pandêmico, é inevitável não pensar nas questões emocionais, que atingem adultos e crianças. Neste contexto, o livro pode ser também uma ferramenta para auxiliar pais e professores a conversarem sobre o universo das emoções com as crianças.
– Aliás, você deixa bem claro que esse novo livro não é voltado só para as crianças. Ele também pode ser apreciado pelos mais crescidos. Os adultos gostam dos livros infantis? Você sente se existe preconceito, por parte desse público, com relação a esse tipo de obra?
– Há uma grande parcela de adultos que gosta, consome literatura infantil e confessa isso publicamente. O ator Lázaro Ramos, numa entrevista, declarou: “leio livros infantis, mais para mim do que para meus filhos”. Outro grupo gosta e lê, mas não confessa, provavelmente com medo de críticas. E por fim, uma parte que nutre o preconceito, pois considera literatura infantil rasa ou até perda de tempo. Possivelmente, nunca leram os contos dos irmãos Grimm ou os clássicos infantis sob outra ótica. Caso contrário, saberiam os impactos deixados na vida das crianças e dos adultos. Talvez falte ao grupo ler “A psicanálise dos contos de fadas”, de Bettelhem. Uma certa psicóloga disse ler “Chapeuzinho amarelo”, de Chico Buarque, quando precisa se posicionar diante do medo. Há muitos exemplos nessa linha. Convivi muitos anos no mercado financeiro. Naquele meio, para quebrar a resistência de alguns sobre literatura infantil, eu citava a frase atribuída à Ursula Guin: “o homem criativo é a criança que sobreviveu”. Creio que consegui quebrar paradigmas, pois todos desejam os benefícios da criatividade. É sempre oportuno lembrar que há uma criança dentro de todos nós.
– Além do livro, você publicou um Manual para o professor, no qual você explica a obra e dá dicas de como trabalhar com ela. Quais suas sugestões para o trabalho com “João Camaleão”? Como não só os professores, mas também os pais, podem fazer com que as crianças se encantem pelos livros?
– No livro dedicado aos professores, há possibilidades diversas para uso na pré-leitura, leitura e pós-leitura. Desde uma roda de conversa para debater sobre cores e emoções, até fazer uma peça teatral. Claro, sem desprezar questões que envolvem a linguagem oral e escrita. Além disso, trabalhar o saber poético, que pode levar a criança a enxergar além do convencional. Lembrando Adélia Prado: “Às vezes Deus me tira a poesia, eu olho uma pedra e só vejo pedra.” De uma forma mais abrangente, o amor ao livro começa com o contato com o livro. Ninguém ama o que não conhece. O livro precisa estar acessível. Dê livros de presente às crianças, coloque livros no quarto, na sala, ao alcance das mãos. Leve a biblioteca para passear e conhecer. Leia com as crianças, permita que elas te vejam lendo. A escritora Lygia Bojunga, certa vez, disse que nos seus primeiros contatos com os livros, eles eram como tijolos. Sim, ela fazia casinha com eles. Mas, nessa relação, ela foi pegando intimidade com as palavras. Quanto mais intimidade tinha, menor era a preocupação em refazer a construção. As palavras passaram a alimentar sua imaginação.
– José Renato, houve um tempo em que eu escutava dos escritores locais que eles se sentiam muito sozinhos com os livros que publicava. Sentiam que não havia apoio. Não havia reconhecimento. Como você avalia, hoje, o cenário da literatura aqui na cidade?
– Bem, quero começar agradecendo à Prefeitura de Juiz de Fora e à Funalfa, pois “João Camelão” teve o apoio da Lei Murilo Mendes para sua publicação. Creio que houve uma sutil melhora no cenário municipal, mas há muito caminho a percorrer. Não vejo, por exemplo, todas as livrarias da cidade darem destaque ou reservarem um espaço para os autores. Existe local, mas é exceção. Temos autores cujos livros foram premiados e adotados por escolas de cidades vizinhas, mas não em nosso município. Vejo autores convidados para promoverem oficinas e falarem de suas obras em lugares distantes, mas não possuem acesso às escolas e entidades locais. Neste sentido, muitos continuam se sentido sem apoio e sem reconhecimento. Não fosse o idealismo, várias obras estariam só no rascunho. Acho extremamente oportuno você levantar essa questão. Há muitas entidades públicas e privadas que podem olhar o tema com mais carinho. Ano passado, junto com um grupo de escritores da LEIAJF, escrevemos um projeto com o nome “Autor e livro na escola”. A ideia era levar não só a literatura, mas permitir aos alunos o contato com o autor. Até agora não tivemos sucesso, mas creio que, dentre os seus leitores, alguns poderão ser sensibilizados com essa questão.
– E vivemos uma discussão forte a respeito do revisionismo na literatura. E aí clássicos da literatura estão sendo questionados, e até modificados. E, seguindo essa linha, existe um movimento de se avaliar os novos conteúdos a serem lançados a fim de evitar polêmica com o lançamento de uma obra que possa gerar problemas com determinados grupos. Como você, que acabou de passar por um curso de pós-graduação em literatura infantil e que está no mercado, vê essa questão?
– Numa sociedade democrática, toda discussão precisa ser acolhida e debatida, não sendo a literatura exceção. É preciso sim, ter atenção a temas que podem soar como ofensas ou desrespeito. Não faz muito tempo, um autor consagrado teve um livro infantil recolhido, pois uma ilustração trouxe uma mensagem negativa, infelizmente. Logo, é necessário ter cuidado ao publicar, solicitando sempre a leitura crítica de um profissional competente. Contudo, é preciso que haja um debate equilibrado e técnico, lembrando que as obras têm relação com o seu tempo. As releituras dos clássicos sempre aconteceram, mas quando você, por exemplo, censura a mãe da Chapeuzinho Vermelho por tê-la deixado ir sozinha visitar a avó ou retira a figura do caçador para preservar o lobo, dentre outras coisas, você mutila a obra original. Muitas críticas são feitas sem o conhecimento do contexto da origem dessas histórias. Portanto, a discussão é válida, inclusive para identificar excessos em propostas de alteração. Em muitos casos, uma anotação de roda pé, explicando a sociedade daquela época, é mais honesta que a modificação de toda a obra.
– Quais são seus próximos projetos literários?
– Estou com outro trabalho infantil em revisão, mas a editora sugeriu discrição, por enquanto. Num outro viés da minha trajetória profissional, tenho um livro sobre liderança, mas ainda sem acordo com uma editora. Acredito que o próximo lançamento será uma coletânea com participação de vários autores da LEIAJF e AJL. Será uma celebração especial para os moradores de Juiz de Fora. Aguardem. Até lá, divulgarei o “João Camaleão” na cidade e região, incluindo lançamentos em cidades vizinhas. E aproveito, finalmente, para convidar os que não leram, a conhecer essa obra, que possui também um QR Code com acesso a áudio descrição, incluindo assim cegos e pessoas com baixa visão no processo literário.
Autor: José Renato Amorim
Editora: Paratexto (24 páginas)
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