O tema do enfrentamento jurídico e político-criminal da questão do porte para consumo pessoal de drogas se insere nos chamados “conflitos morais razoáveis” — que, às vezes, reclamam definição jurisdicional [sobretudo nos casos em que o foro ideal para que esses conflitos sejam definidos — o parlamento —, por qualquer razão, se furte a enfrentá-los].
De saída, é preciso reconhecer a complexidade do assunto, sem que se caia na tentação do simplismo barato (em geral ideologicamente contaminado) e de se tratar a questão movendo-se pelo chamando “pensamento binário” (Edgar Morin).
Nos conflitos morais razoáveis, apesar de as partes envolvidas terem discordâncias profundas, todas as posições são consideradas racionalmente legítimas dentro do processo democrático. É nessa moldura que se insere a recente decisão do STF que fixa um marco quantitativo para a caracterização jurídica de usuários e traficantes de maconha (ao fixar o limite divisor de 40 gramas ou seis plantas fêmeas de cannabis), descriminalizando o porte para uso da droga. Além de sacramentar o afastamento do usuário das engrenagens penais, a Corte também oferece uma diretriz objetiva que visa reduzir a indesejável subjetividade nas abordagens policiais e judiciais.
Proporciona-se, assim, segurança jurídica. Desde as revoluções liberais o direito aspira, fortemente, previsibilidade, clareza, antídotos da tirania. E é inegável que a decisão do STF ofereceu ao sistema jurídico-criminal brasileiro um grau de segurança jurídica sem precedentes na aplicação da Lei de Drogas. A nitidez na definição dos limites quantitativos, embora suscetível a críticas, tem o potencial de minimizar os efeitos negativos de uma aplicação arbitrária e, não raramente, discriminatória da lei.
Isso não nos impede, contudo, de perceber as complexidades inerentes à implementação desta nova diretriz. A decisão — é bom que se note — ainda permite a acusação de tráfico mesmo abaixo deste limite, caso haja evidências de comercialização, e não impede automaticamente que quantidades superiores sejam consideradas para uso pessoal, dependendo do contexto. Este equilíbrio delicado talvez reflita a tentativa do STF de manter a flexibilidade judicial enquanto impõe um quadro normativo mais claro.
A efetividade desta medida, entretanto, dependerá da sua implementação rigorosa e da contínua vigilância para evitar desvios interpretativos que deixem escoar pelo ralo a expectativa de maior segurança jurídica trazida pelo julgamento.
O STF caminhou pela temível corda do equilibrista, tensionada entre a segurança jurídica e os conflitos morais. Andou bem e parece não ter esborrachado no trajeto.
Entretanto, é bom que o STF se mantenha autocontido e não presuma demais de si próprio. “O equilibrista pode achar que está voando, mas o STF não” — gosta(va) de repetir Barroso em suas aulas e palestras. Fato: na jurisdição constitucional não há rede de segurança e a queda machuca a democracia.