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Você sabe com quem está falando?

coluna bruno stiger

1. Construção da ideia

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Como dissera certa vez Alceu Amoroso Lima, “o Brasil se formara às avessas, começara pelo fim. Tivera Coroa, antes de ter Povo. Tivera parlamentarismo, antes de ter eleições. Tivera escolas superiores, antes de ter educação popular (…) Aspirara à potência mundial, antes de ter a paz e a força interior”. É desse vício de origem que a cultura brasileira aprendeu a tratar as pessoas de forma diferenciada, tendo como traço distintivo a posição social que ocupa em uma relação.

Na vida cotidiana, é comum ignorar as leis em favor das amizades. Desmoralizadas, as leis não possuem tanto valor quanto a palavra de um “bom” amigo; afastar as leis e suas sanções é prova de boa vontade e um gesto de confiança, o que favorece boas relações. Surge daí um adágio eternizado em nossa cultura: “aos inimigos, as leis; aos amigos, tudo”. De toda sorte, falar sobre a maneira como se deu a nossa configuração econômica, social e cultural é evocar a predominância de uma tendência nomeadamente patriarcalista, patrimonialista e oligárquica, que coloca as Instituições como domínios de reprodução do status quo. A síntese conformadora desta tríade de fenômenos pode ser identificada numa palavra: autoritarismo. Este ethos autoritário, baseado sempre no padrão assimétrico e vertical das nossas relações, tem o seu epítome magistralmente descrito por Damatta, na conhecida expressão: “você sabe com quem está falando?”. Este “quem” é, por vezes, o Estado opressor, e, por outras, o aristocrata, o oligarca, enfim, categorias que encarnam o fenômeno autoritário.

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Sob esta triste influência foram plasmadas nossas instituições e cuja presença, tão arraigada, erigiu obstáculos notáveis para a concretização das transformações sociais de que sempre tanto nos ressentimos. Esta concentração do poder econômico e político nas mãos de pequenos grupos faz surgir uma elite dirigente a que Raimundo Faoro denomina “estamento político”, e que assinala a ocorrência do que é assim descrito como a conversão do patrimonialismo pessoal em patrimonialismo estatal. E o que seria esse patrimonialismo?

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O patrimonialismo designa um tipo de atitude onde o Estado é tido e havido com um bem realmente pessoal, um patrimônio que deve ser usufruído a bel-prazer daqueles que julgam ter sobre ele “direitos”. Em termos mais objetivos, o patrimonialismo é o modo pelo qual governantes de qualquer nível, do presidente ao simples funcionário, se valem do bem comum para a sua vantagem privada.

2. A vida como ela é

Assentadas as premissas conceituais, dois acontecimentos recentes provam e comprovam a eterna cultura patrimonial dos agentes públicos brasileiros em todos os níveis.

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O primeiro acontecimento se deu com um desembargador do TJSP. Abordado por um guarda municipal por não cumprir o decreto que obrigava o uso de máscara em locais públicos, o desembargador se dirigiu ao guarda como pertencente a uma casta superior. Na sequência, liga para Sérgio Del Bel, secretário de Segurança Pública do município. Na ligação, chama o guarda de “analfabeto”. Depois que o guarda municipal entrega a multa, o desembargador rasga o papel e joga no chão. No vídeo, o desembargador menciona que é amigo de Márcio França (ex governador de SP), começa a falar em francês e diz que seu irmão é procurador de justiça que atua nos inquéritos da PM/SP.

O segundo exemplo foi o uso da AGU pelo Presidente da República ao propor uma Adi para reverter decisão do Min. Alexandre de Moraes, que suspendeu contas de redes sociais de influenciadores, empresários e políticos brasileiros. Em um perfil de rede social, o presidente publicou “Agora às 18h, juntamente com a AGU, entrei com uma Adi no STF visando ao cumprimento de dispositivos constitucionais. Uma ação baseada na clareza do Art. 5° [da Constituição], dos direitos e garantias fundamentais”. Ora, a AGU não advoga privadamente para o presidente, não tem dentre suas atribuições propor ações em favor de pessoas ou grupo de pessoas específicas, notadamente um grupo alinhado com o Presidente. Sua função – essencial à justiça – é defender o interesse público e a legalidade/constitucionalidade de situações que envolvam o Estado. O advogado público não pode e nem deve, como já ouvi, estar fechado com o Administrador, isso viola a impessoalidade. Ele está fechado com a lei e a Constituição!

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A confusão entre público e privado (patrimonialismo) continua sendo, portanto, um vício atávico da nossa forma de ser, pensar e se relacionar, infelizmente!

Enfim, você sabe com quem está falando?

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