No longínquo 2004, um artigo intitulado “Considerações sobre a operação Mani Pulite” celebrava a Operação Mãos Limpas, uma “cruzada judiciária contra a corrupção política”, marco histórico responsável pela “queda do sistema de corrupção italiano” – palavras do próprio autor.
Mas não somente os fins (e resultados) da Operação são ali festejados: para o autor, ela deveria ser contemplada em seus meios. Estratégias como vazamentos para a imprensa cuidadosamente selecionados, publicidade opressiva, emprego de coação para a produção de confissões e delações (entre outras táticas) seriam roteiro de sucesso para a “cruzada” contra a criminalidade política.
Acreditar, porém, que a Mani Pulite promoveu a queda da corrupção na Itália é, no mínimo, um ato de ingenuidade polianesca. Berlusconi que o diga.
E quanto aos meios? Há quem sustente que a violação ao due process of law sempre estará justificada pelo fim que se almeja. O mantra utilitarista segundo o qual “os fins justificam os meios” ecoa de longe. Desde o medievo, sempre houve quem aceitasse a barbárie em nome de uma (paradoxal) “justiça”. Nesse solo floresceu a tortura e segue brotando toda sorte de inumanidades e relativismos.
Dez anos após a publicação do texto, o autor, Sérgio Fernando Moro, até então um incógnito juiz federal, veio a alcançar absoluta projeção nacional como magistrado responsável pela Operação Lava Jato. Tinha, agora, uma Operação Mãos Limpas inteirinha para chamar de sua.
O magistrado paranaense tem diante de si dois caminhos: o primeiro, agir com obediência ao rule of law, respeitando incondicionalmente a legalidade. Afinal, a (fundamental!) luta pela moralidade pública não pode custar a sangria de conquistas históricas no campo dos direitos individuais. Ou – seguindo outro caminho – Moro surfaria no utilitarismo (de fundo inquisitório) onde, basicamente, em nome de sua “cruzada” contra a corrupção, não reconheceria limite algum ao seu poder. Optou pela segunda via.
Sérgio Moro usou e abusou de medidas de teor coercitivo (prisões, sobretudo) como forma de criar um “ambiente propício” a delações premiadas, como já defendera no artigo de 2004. Desrespeitou prerrogativas de profissionais da advocacia. Promoveu centenas de conduções coercitivas de investigados e acusados. Vazou conteúdos sigilosos diretamente à imprensa. Promoveu incontáveis atos grosseiros de cerceamento à defesa de acusados, entre tantos outros casos de ruptura com a legalidade.
Quando já se alertava há muito sobre as evidentes ilegalidades de Moro, matérias do The Intercept constatam (ou confirmam?) que o juiz vinha tendo postura cooperativa com a acusação, a ponto de indicar provas a serem produzidas, sugerir estratégias, estimular novas fases da Operação etc.
Entre parcialidade e lawfare, na cena seguinte, os resultados políticos não tardariam a surgir.
No final de 2018, Sérgio Moro abandona a magistratura, sendo guindado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública a convite de Jair Bolsonaro. Após dezesseis meses à frente da pasta, sob a justificativa de não ceder a pressões políticas (?), Sérgio Moro pede exoneração. Ao deixar o cargo, imputa ao chefe do Poder Executivo a prática de vários ilícitos, ao mesmo tempo em que – conscientemente ou não – confessa a prática de outros ilícitos, como solicitar pensão indevida (não prevista em lei) a familiares como condição para assunção do cargo de ministro e instigar desobediência à ordem judicial.
Moro será investigado, juntamente com Bolsonaro, a pedido da PGR, perante o STF (sim, a investigação recairá sobre ambos). Agora do “outro lado”, invocará em sua defesa a observância do devido processo legal (e o merece, como todos nós).
De inquisidor a delator, cumpre-se a liturgia.
Vale indagar: se todos nós queremos firme combate à corrupção, que espécie de combate devemos travar? O que respeita as leis ou o que as ignora? É legítimo o combate à corrupção a partir de métodos, em si, corruptos?
O caminho republicano é longo, bem se nota. As reações à saída de Sérgio Moro sugerem ainda estarmos imantados por certo culto à personalidade, uma espécie de caudilhismo ou sebastianismo à brasileira.
De minha parte, vou com o velho Nietzsche: “Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter pés de barro”.
Mão limpas, pés de barro.