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A fé dos invasores

coluna carlos eduardo paletta
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E Biden foi empossado, apesar da invasão do Capitólio sob nosso olhar incrédulo.

Após cenas nunca imaginadas tomarem conta das TVs e portais de notícias, tive a curiosidade de buscar informações sobre os invasores do Capitólio. Afinal, quem eram essas pessoas? Li um artigo sobre Ashli Babbit, a ex-militar que perdeu a vida naquele dia. No jornal Estado de São Paulo, a invasora Lindsay French, do Texas, esclarece: “nossa luta é do bem contra o mal, da luz contra a escuridão”. O viking sem camisa é Jacob Chansley. Numa entrevista, ele acusa os bancos centrais dos países de fazerem parte de um esquema de controle mundial, usando trilhões de dólares para criar bases subterrâneas onde são instaladas tecnologias para pesquisar a energia infinita, clonagem e a antigravidade. Segundo Jacob, essa rede de burocratas pratica tráfico humano e pedofilia. Trump seria o homem certo contra essa seita secreta.

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Como entender o fenômeno? Cabe aqui uma pequena digressão. Para o filósofo Michael Oakeshot, duas correntes políticas dominaram nosso pensamento desde o século XV: a política da fé e a do ceticismo. Na primeira, a crença em um ideal de perfeição humana é tamanha que persegui-lo é uma obrigação. Fazer política nesse estilo é uma aventura divina (ainda que o seja numa versão secular, como no marxismo). Já para o cético, há uma desconfiança inata em relação ao poder humano nos assuntos políticos. Não se escolhe a “verdade” única a ser perseguida com fé cega.

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De volta aos invasores. Para eles, não há espaço para o diálogo político. Se seus adversários são pedófilos globalistas e banqueiros satânicos, como sentar na mesma mesa para debater diferentes pontos de vista e criar consensos possíveis? Contra o Mal, só há uma coisa a fazer: aniquilar. E se existe um político do “Bem” que encarna essa luta, ser devotado a ele é um imperativo. Não é difícil perceber que acusar o adversário de ser a encarnação do Mal só é possível para quem transita no estilo político da fé, onde se transfere a questão do campo mundano para o da metafísica.

Paradoxalmente, os Estados Unidos são um dos maiores experimentos na política do ceticismo (embora tenham lá seus elementos de fé). Com suas instituições democráticas e ambições de poder contidas por regras escritas e não escritas, é um país de ideais políticos liberais. E aí reside talvez uma primeira explicação para o problema: quando as regras do estilo cético funcionam, a política parece tornar-se um jogo improdutivo ou monótono. Ninguém se apaixona pela moderação. Horas de debate sem avanços no Congresso não geram engajamento. “Há disputas sem ódio e conflitos sem violência” (Oakeshot).

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Ocorre que, especialmente em razão do bombardeio incessante das redes sociais, engajamento é a meta – “like” é vida. Daí porque o que parecia impensável – a invasão – aconteceu. Ali, ninguém duvidava. Adversários são inimigos. Pouco importa se o Poder Judiciário norte-americano decidiu que não houve fraude eleitoral em mais de 60 ações, duas na Suprema Corte.

E assim presenciamos o momento em que os posts da internet ganharam vida. Mas foi uma vida estranha. Quando as conspirações on-line pularam das telas para o Capitólio, invasores começaram a fazer selfies e vídeos. Não queriam tomar o poder. Era o “golpe” Instagram – não fossem as mortes reais. Sim, as mortes lembram que, infelizmente, nem tudo se resolve com negociações e compromissos. Nem com selfies. É como Raymond Aron falou do então presidente francês, Giscard d’Estaing: “o drama de Giscard é que ele não sabe que a história é trágica”. Num mundo de violência, paixões e ódios, o trágico estará sempre à espreita. Por isso, não se deve subestimá-lo.

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Mas como? Lembrando que, quando a fé na política transforma Cesar (ou Trump) em Deus, a receita para o caos está dada. A verdadeira fé – a religiosa – advém do amor, não do ódio (e ainda que o amor não seja viável na esfera pública, Hannah Arendt ensina que o respeito toma seu lugar). Como ensina a Encíclica Lumen Fidei, “longe de nos endurecer, a segurança da fé põe-nos a caminho e torna possível o testemunho e o diálogo com todos”.

A fé verdadeira vem, pois, da escuta. Já a falsa leva à idolatria, movimento sem meta e sem respeito que pula de um falso senhor para o outro – o que parece ser justamente o caso dos fenômenos políticos atuais, inclusive entre nós, à direita e à esquerda.

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