Alguém poderia supor que na coluna de hoje o tema seria o preço do arroz e o caricato “liberalismo econômico” brasileiro, retratado no apelo do Presidente da República para os agentes do mercado de alimentos abaixarem o preço do produto, “ação típica” de um “liberal clássico”. Por outro lado, talvez mais atual fosse escrever sobre a deputada e como ela traduz bem o perfil “conservador nos costumes” da suposta direita brasileira. Bem, talvez nas próximas linhas, de modo sútil, tudo isso apareça. No ponto, a proposta é falar sobre a obra “Tirania do Mérito” do influente pensador americano Michael Sandel. Nela, a polarização ideológica, a ausência de solidariedade e a falácia do mérito são questões centrais e em boa medida retratam não só os Estados Unidos de hoje, mas também nosso país, numa faceta até mais perversa do que lá.
Segundo Sandel, nossos tempos são de profundo rancor entre grupos e de crescentes desigualdades, num ciclo de retroalimentação e polarização que aumentaram consideravelmente na pandemia. Um dos fatores centrais nesse processo é a “falácia” da meritocracia que provocou uma considerável arrogância entre os que “venceram”, impondo um julgamento cruel aos que ficaram “para trás”, uma vez que na corrida da vida as pessoas tendem a conquistar seus bens e coisas de acordo com seu “esforço”, em tese sem qualquer tipo de ajuda ou cooperação social.
Esse funil social de vencedores e perdedores, acompanhado de frustração e ressentimento, provocou uma onda conservadora no mundo, criando bolhas que precisam ser superadas na direção de uma experiência democrática compartilhada, solidária e inclusiva. É perigoso pensar que o fracasso do outro não possui relação alguma comigo e que minha vitória tributa exclusivamente de meu mérito individual, nada mais.
Mais que de distribuição equitativa dos bens e riquezas, o momento é de mudança de postura. Há uma falsa crença difundida entre os que, nas palavras de Sandel, “aterrissaram lá em cima” e acreditam cegamente que estão lá graças ao seu sucesso. Consequentemente, os que ficaram para trás, lá estão pela falta de esforço. Será tão simples assim o diagnóstico depois de décadas de globalização neoliberal? A resposta é não!
A globalização neoliberal trouxe uma deficiente repartição entre ganhadores e perdedores, até por que as questões relativas à justiça não estão vinculadas somente à redistribuição (econômica), mas também ao reconhecimento entre iguais (estima social).
É preciso reconhecer o papel e o valor da sorte na vida e dar lugar a uma indispensável humildade. Convenhamos que esse “véu de humildade” costuma não combinar com o estilo das elites meritocráticas de hoje (mais situadas à direita no campo político), desprovidas de empatia e alteridade. Como diz Sandel, trata-se de uma arrogância meritocrática que deve ser desafiada e incomodada, para assim pensarmos num primeiro passo na direção de uma solidariedade social potente.
A meritocracia cega corrói o bem comum. A falácia de que certas pessoas não conquistaram sucesso porque nunca se dedicaram é um “insulto implícito”. Devemos ressignificar o papel de cada um na sociedade e armar as pessoas para o combate democrático. O trabalho deve ser visto para além de uma forma de ganhar a vida, mas pensado na perspectiva de como contributo para o bem comum ou sobre como ajudo a construir o país. Pensem, por exemplo, no contexto da pandemia, como o trabalho de médicos e enfermeiros seria terrivelmente enfraquecido se os lixeiros não recolhessem o lixo. Em última análise a saúde pública sucumbiria!
Enfim, é preciso furar as bolhas, reconectar e reconstruir uma base democrática compartilhada, proporcionar a troca cívica entre os que na corrida da vida correm de tênis e descalços, sem arrogância no sucesso e nem amargura na derrota. O fracasso de um ser humano é de todos, como também é a felicidade. O estômago que ronca na barriga do outro dói em mim, pois só consigo me ver e me reconhecer como ser humano através de outro ser humano (ubuntu).
É urgente abandonar os populismos à esquerda e à direita, pois eles são usados para atrair o voto dos descontentes de lado a lado. Os discursos de ambos são de ressentimentos e não de bem comum.