O modelo de justiça criminal vivenciado por uma nação revela sua essência política. Portanto, a exata compreensão do papel do juiz nos sistemas penais é condição de possibilidade para a estruturação de um processo penal de índole democrática.
Nesse contexto, a Lei 13.964, sancionada em dezembro 2019 (“Pacote Anticrime”), trouxe ao cenário brasileiro a figura do “juiz das garantias”, rapidamente conduzida ao posto de um dos primeiros temas “polêmicos” do ano que se inicia.
Muitas vezes, para se entender o que aqui se passa, é preciso sair daqui: “é necessário sair da ilha para ver a ilha, não nos vemos se não saímos de nós” – aconselhava Saramago.
Desde o final dos anos 1980, vários países europeus reformaram seus sistemas de justiça criminal. Dentre as reformulações estruturais, destacou-se a proibição de que o juiz que houvesse atuado na fase de investigação criminal seguisse no mesmo caso até o julgamento. O processo e o julgamento, portanto, devem estar a cargo de magistrado diverso do que atuou na etapa investigativa – sendo este último o denominado “juiz das garantias”.
Seguindo no olhar “de fora da ilha”, repare-se que nos países do bloco continental latino-americano a superação dos regimes ditatoriais impôs a ruptura com a tradição inquisitória, herança da colonização espanhola. Assim, nos últimos 25 anos, países como Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai, Bolívia, Colômbia, Bolívia (entre outros) reformularam seus Códigos, harmonizando-os com suas Constituições democráticas e com a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos. Passaram a impedir, por conseguinte, que um mesmo juiz mantivesse contato com a investigação criminal e viesse a instruir e julgar o caso penal. Uma vez mais, tem-se o “juiz das garantias”, cuja competência cessa com o início da fase processual.
Mas, afinal, qual a razão de se impedir que o juiz que atua na fase da investigação seja o mesmo a sentenciar o caso penal? É de se perceber que juiz que atua na fase investigativa acaba por se “contaminar” subjetivamente com os elementos que ali são apurados, sendo que essa “contaminação” põe em risco a necessária imparcialidade do julgador.
O juiz que manteve contato com interceptações telefônicas, gravações ambientais, quebras de sigilo ou tenha decretado a prisão preventiva do indiciado, por exemplo, é influenciado por esses elementos, formando uma percepção antecipada a respeito do crime e da autoria. É precisamente isso que o “juiz das garantias” vem a evitar, garantindo a imparcialidade do julgador (que não pode ter atuado, insista-se, na fase de investigação).
O estabelecimento do “juiz das garantias”, todavia, tem enfrentado significativa resistência por aqui. Com alguma frequência é invocada, por exemplo, a inaptidão estrutural do Poder Judiciário para a adoção desse modelo.
Não há dúvida: direitos custam dinheiro, conforme Stephen Holmes e Cass Sunstein detectaram na obra The Cost of Rights. A questão reside em compreender (ou não) a essencialidade do direito para a preservação do ambiente democrático, justificando-se (ou não) o investimento. Tome-se, por exemplo, o caso do Chile, onde a adoção do “juiz das garantias” se deu no contexto de ampliação no investimento no sistema de justiça criminal e fortalecimento dos órgãos que perante ele atuam.
Por outro lado, há alternativas que podem ser acionadas para contorno de eventuais pontos de estrangulamento como a implementação gradual no tempo (conforme a estrutura das comarcas) e aplicação somente aos novos casos penais – experiências bem-sucedidas também adotadas na América Latina.
Advirta-se, contudo, que a constitucionalidade do “juiz de garantias” está sendo questionada perante o Supremo Tribunal Federal nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305. Espera-se, nessas ações, que a Corte cumpra seu papel institucional e reconheça que o “juiz das garantias” não vulnera a Constituição – muito ao contrário, aliás: fortalece sobremaneira as bases do processo penal democrático no país, ainda atrelado ao Código de Processo Penal de 1941, de matriz fascista e inquisitória.
Portanto, em que pese não tenha atingido sua forma ideal na Lei 13.964/19, o estabelecimento do “juiz das garantias” é medida urgente. Não se trata de mera alteração procedimental, mas verdadeiro amadurecimento cultural sobre a noção da jurisdição e seu papel na democracia.
Evoluir é preciso.