As mídias sociais são boas ou ruins para a democracia?
Partamos de um lugar comum: são ótimas. Potencializam o acesso, a transferência e a circulação da informação entre pessoas num padrão de eficácia, tempo e quantidade jamais experimentados pelo homem.
Todavia, seguindo os conselhos de Edgar Morin, deixemos de lado o pensamento binário (“bom ou ruim?”) e assumamos a complexidade do assunto.
Cass Sunstein, advogado norte-americano e professor da Universidade de Harvard, em artigo cujo título é idêntico à pergunta que propulsiona esta coluna (disponível no link) ao concordar com o “lado bom” das mídias sociais, explica que há, porém, uma questão “mais sutil” que deve merecer nossa atenção: nos adverte (nesse texto e em muitas outras obras dedicadas ao tema) para os nocivos efeitos que esse tipo de interação massificada tem projetado sobre a democracia e sobre a cidadania na “República 2.0”.
Nesse ambiente conformado por “bolhas de informação”, a vida democrática tem apresentado sintomas delicados: aumento da fragmentação, acentuada polarização, extremismo e radicalização (na perspectiva política e sob diversos outros matizes).
Sem torcer o nariz para as maravilhas que trouxeram à convivência humana, a internet e as redes sociais também funcionaram – reconheçamos – como uma espécie de catalisador do que há de pior em muita gente.
Agora instrumentalizados por extraordinários meios de divulgação, agressores virtuais veem reverberar seus grunhidos, som que ecoa à velocidade da luz ressonando notas de ódio, intolerância, truculência, sectarismo, racismo, classismo, xenofobia, misoginia, homofobia e quetais. O discurso de ódio (hate speech), categoria até pouco tempo confinada nos tubos de ensaio do pensamento acadêmico dos programas de pós-graduação em Direito, agora é pãozinho com manteiga no café da manhã.
No front do extremismo de recorte político, um case tem sido objeto de boas discussões: o assim chamado “inquérito das fake news”, em trâmite perante o STF. O tema das fake news é um largo portal que se abre para inúmeras reflexões – a serem encetadas, quem sabe, em outro texto por aqui. Quanto ao “inquérito das fake news”, são perceptíveis violações à ordem jurídica ali engendradas, em especial no que toca à ruptura da garantia do juiz natural. É bom lembrar: só teremos passado no teste da consciência democrática do devido processo legal quando o exigirmos mesmo para aqueles com os quais não nos afeiçoamos (e, às vezes, não nos afeiçoamos a alguém justamente pelo seu desprezo à democracia).
De toda forma, quanto ao “mérito” do inquérito, algo chama a atenção. Na sessão de 17/06/2020, o relator do inquérito, Min. Alexandre de Moraes, leu algumas mensagens obtidas em mídias sociais durantes as investigações. Transcrevo duas: “Que estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF” e “Quanto custa atirar à queima-roupa nas costas de cada filho da p*** ministro do STF que queira acabar com a prisão em segunda instância? Se acabar com a segunda instância, só nos resta jogar combustível e tocar fogo no plenário com os ministros dentro”.
Autos de inquérito são numerados, não deviam receber nome. Mas se este recebeu, foi mal nomeado. Não são fake news, são (no mínimo) ameaças. Estariam os redatores dessas duas mensagens imunes à persecução penal? Seria a liberdade de expressão seu escudo protetor?
Não, por óbvio. A Constituição franqueou-nos o direito de expressarmos nossas ideias, opiniões, pensamentos, juízos (ou até mesmo palpites e achismos, como tem sido bastante comum) com ampla liberdade, mas a Carta não nos outorgou liberdade de agressão, liberdade de ofensa a outra pessoa ou nada do tipo. Ao contrário: o texto constitucional espraia sua tutela por sobre a dignidade de tantos quantos possam ser atingidos por essas violações.
Em resumo: dizeres desse teor não só fogem ao escopo da liberdade de expressão como se abrem para a responsabilidade civil e criminal de seus autores. Na “Era do Radicalismo” (Sunstein), o desafio está posto: nunca mais voltar a beber daquele “cálice/cale-se” cantado por Chico (calar nunca será uma palavra de ordem própria da democracia), impedindo, ao mesmo tempo, que a violência se sirva da liberdade como seu escudo.