Na tragédia grega, Antígona enfrentou seu tio Creonte para poder enterrar o corpo de seu irmão, Polínices. Hécuba, já feita escrava após a queda de Troia, lamenta que os deuses não permitam que ela cuide com o devido decoro do corpo do seu neto, Astíanax, assassinado pelos aqueus.
Cuidamos da vida, mas não só. Queremos que nosso fim seja, na medida do possível, digno. E essa dignidade vai além até mesmo do fim, chegando ao post mortem. O Código Penal brasileiro, por exemplo, traz um capítulo somente sobre o respeito que devemos aos mortos _ e também aos vivos que deles se despedem. São proibidos atos de perturbação de cerimônia funerária; profanação de sepultura; destruição ou ocultação de cadáver. Nada diferente das tragédias gregas. Queremos que o fim seja digno para quem fica e para quem vai.
Tudo isso vem à mente em tempos de covid-19. Como ficar indiferente aos médicos italianos e espanhois que tiveram de escolher entre quem vive e quem morre? Aos corpos que não encontram o funeral decoroso? Aos parentes que não podem velar os que partem?
Vivenciando o drama face a face, estão os profissionais da saúde, com sua ética do salvar. Ali, fazer a escolha de quem vive ou morre só vem em último caso. Havendo opção, seu juramento é curar. Ao menos nos hospitais, a sacralidade da vida e da morte, mesmo para os não religiosos, é o que prevalece.
Talvez seja por isso que a ética utilitarista – que mede as consequências dos atos humanos (“a maior felicidade para o maior número”, ainda que alguns sejam sacrificados no caminho) – entre em choque com a ética deontológica, que compreende cada pessoa como um fim em si mesmo (como em Kant ou São João Paulo II na encíclica “Veritatis Splendor”). Se legislamos para proteger o luto e a morte, por que não protegeríamos quem está aqui no seu momento mais frágil? Cada um de nós espera que sua vida termine não em catástrofe, mas, se possível, na paz, junto aos seus, preparando-se para o adeus.
Nesse momento difícil, nossas más escolhas podem mudar até mesmo nossa percepção coletiva da morte. Se ela for só um número, aprenderemos a calcular onde deve haver unicamente absolutos. Se quisermos que a vida inspire algum respeito, ensina o filósofo Roger Scruton, temos de tratar a morte como precisa ser tratada, vale dizer, como se abreviar a existência de alguém fosse interferir no eterno em nome do temporal. Trazendo para o nosso debate atual, não é o SUS que irá colapsar, mas cada um de nós – especialmente os que mais se doam nos hospitais. Como explicar para quem tem a obrigação de salvar vidas que decidimos, como sociedade, que pouco importa a falta de leitos de UTI? Por que os profissionais da saúde devem absorver sozinhos o impacto de uma decisão de vies político-econômico? Eles devem carregar o fardo social, psicológico e moral de escolhas trágicas para que a vida do restante siga numa falsa normalidade? Ainda que o futuro demonstre que entramos em pânico em vão – Deus queira -, não terá sido por um bom motivo?
Em “A Peste”, de Albert Camus, o médico Rieux diz “que a ordem deste mundo é regulada pela morte”. Quando Tarrou lhe provoca dizendo que as vitórias da medicina são efêmeras, Rieux, como qualquer profissional fiel ao seu juramento, responde: “Não é uma razão para deixar de lutar”. A questão, no fim das contas, é que luta queremos lutar e o que nos tornaremos depois disso – como seres humanos e como sociedade.