Em minha primeira coluna aqui neste espaço, falei de uma modificação realizada pela Lei nº 13.874/2019, a Lei da Liberdade Econômica, que foi bastante positiva, qual seja, a criação da sociedade limitada unipessoal. Hoje quero tratar de uma alteração que não parece ser merecedora de elogios e que precisará de muito cuidado ao ser aplicada na prática. Trata-se da nova redação do artigo 50 do Código Civil, que passou a exigir que para atingir o patrimônio particular dos sócios ou administradores em virtude de dívidas da pessoa jurídica, há que se provar que eles se beneficiaram direta ou indiretamente com o ato de abuso da personalidade.
Separar a pessoa jurídica do(s) seu(s) titular(es) é legítimo e fundamental para garantir que haja investimentos na atividade empresária, diminuindo o risco natural que toda e qualquer atividade econômica possui. A conquista da autonomia patrimonial da pessoa jurídica mostrou-se salutar para o desenvolvimento da atividade empresária em um sistema econômico capitalista como o que estamos inseridos. Porém, até para que tal instituto não se torne algo desacreditado, ele precisa ser utilizado em acordo com a sua finalidade e não pode ser instrumento de abuso ou fraude.
Nesse sentido, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) foi pensada com o objetivo de solucionar situações abusivas, nas quais a personalidade jurídica e a sua autonomia patrimonial eram usadas por administradores e sócios como uma proteção de não responsabilização e de não comprometimento de seu patrimônio, para praticar atos prejudiciais a seus credores, como fraudes. No Brasil, tivemos diversas decisões judiciais aplicando a desconsideração da personalidade jurídica, antes mesmo de qualquer previsão legal. O CDC foi o primeiro diploma legal a mencionar a desconsideração, que posteriormente ganhou um regramento geral no artigo 50 do Código Civil.
Até abril de 2019, o requisito principal que se exigia para que o juiz pudesse estender os efeitos de certas e determinadas obrigações ao patrimônio dos sócios ou administradores era a existência do ato de abuso da personalidade, que pode ser caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Doutrina e jurisprudência, desde então, seguem uma linha majoritária de interpretação no sentido de que somente os sócios ou administradores que tiveram efetiva participação no ato abusivo deveriam ter seu patrimônio particular atingido. Justo! Agora, criou-se mais um requisito: a prova de que o sócio ou administrador tenha se beneficiado de forma direta ou indireta pelo ato de abuso da personalidade. Tal modificação levanta alguns questionamentos: que benefício seria este? Benefício econômico?
O sócio tem que ter ganhado alguma vantagem patrimonial ou simplesmente não ter sofrido prejuízo já é o bastante para falar na existência deste benefício? São questionamentos que precisarão ser analisados pela doutrina e pela jurisprudência. Mas uma coisa é certa. É preciso que este novo requisito não crie um retrocesso na aplicação da desconsideração da personalidade jurídica que é necessária para que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas não se torne instrumento de injustiça!