No rumoroso caso “André do Rap”, tudo indica que houve erro em sua libertação. Mas quem errou?
No último dia 10 de setembro, tomou posse como Presidente do STF o Min. Luiz Fux. Em seu discurso inicial, o elemento “povo” brota como protagonista de sua gestão. A primeira parte de sua fala é intitulada “O povo brasileiro e a sua identidade constitucional: o senso de missão do Supremo Tribunal Federal”. Em seguida, a palavra “povo” é repetida outras nove vezes, sendo exortada este povo como a “exegeta maior”, cujo “sentimento constitucional” deve ser a bússola do STF.
Um mês depois, coerente com seu discurso, o Min. Luiz Fux, obrando como instância recursal de outro Ministro (Marco Aurélio de Mello), cassa liminar por este deferida para ordenar que “André do Rap”, poderoso líder de facção criminosa, retornasse à prisão.
A liminar de Marco Aurélio se fundou no art. 316 do Código de Processo Penal, que desde a Lei Anticrime determina que os fundamentos de uma prisão preventiva sejam reavaliados, no máximo, a cada 90 dias.
Convenhamos: é inegável o impacto simbólico de um poderoso líder de facção ser libertado. Algo que o “sentimento social” jamais admitiria – e com toda razão.
Proponho, contudo, um outro caminho de compreensão do problema. Vire a capa do processo, onde consta o nome do acusado. Passemos às páginas seguintes e miremos o conteúdo (texto e contexto).
Descobriremos que, sim, o art. 316 do CPP fixa que a prisão cautelar de qualquer cidadão tenha seus fundamentos reavaliados a cada 90 dias. Os mais atentos notarão que essa tardia alteração legal tirou o Brasil da pré-iluminismo penal, pois praticamente não há país no mundo civilizado que admita encarcerar qualquer cidadão sem julgamento definitivo sem que se estabeleça um prazo para que essa situação seja, ao menos, reavaliada.
Perceberemos mais: que o Ministério Público e o Poder Judiciário nas instâncias inferiores, no caso em análise, negligenciaram quanto ao cumprimento da Lei (que vale para qualquer cidadão) sem sequer exporem as razões pelas quais a prisão deveria continuar (e, cá entre nós, é até bem provável que razões para isso existissem). Não se recusa o quanto estivessem assoberbados com seus milhares de processos. Mas há um fato: não cumpriram a Lei.
Constataremos, enfim, que um Presidente de um Tribunal (de qualquer Tribunal) funcionar como órgão censor de órgão fracionário ou de outro membro de uma Corte em pleno exercício de sua judicatura é tão admissível juridicamente quanto um médico de um posto de saúde lavrar uma multa de trânsito e deixá-la no painel do veículo do infrator.
Fux, coerente com sua retórica, caminhou com o sentimento do povo. Não à toa, seu gesto tem sido massivamente festejado. Ignorou, porém, a ordem jurídica, o que não prejudica sua estrondosa aprovação social. Eis o perigo.
Não há dúvida, todo poder emana do povo. E é essa a mola propulsora de um complexo institucional e normativo, produto da soberania popular, em cujo respeito reside a esperança mínima de este povo não ser traído por discursos sediciosos que só fazem atentar contra seus próprios direitos.
Que o povo seja, sempre, o agente e sujeito de sua história, e que isso se desenhe “com” as leis e com a Constituição, jamais “apesar” delas.
Se no caso “André do Rap” houve erros que resultaram em sua liberdade (e é bem provável que tenham ocorrido, insisto), que não se culpe a Lei ou quem a fez observar. Que culpemos quem a descumpriu.
Que o inspirador exemplo do Min. Celso de Mello, recém aposentado, seja o guia para que um dia compreendamos que o “sentimento constitucional do povo” (Pablo Lucas Verdú) nada tem a ver com populismo judicial, mas com o afeto e a adesão do povo às Leis e à Constituição.
Que sobreviva nas mentes e corações dos juízes constitucionais que ficaram a lição do grande jurista Celso de Mello: “Os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer réu mediante instauração, em juízo, do devido processo penal.”
Já sentimos saudades, Ministro.