As fake news se tornaram onipresentes – não há dúvidas disso. Levando nossas vidas entre o real e o virtual, não escapamos delas enquanto lemos as últimas mensagens de WhatsApp ou somos capturados pelas redes sociais. É a vida em tempos de pós-verdade.
O problema é que, como dizia o Conselheiro Acácio, as consequências vêm depois. E elas são péssimas, na medida em que podem corroer o tecido social que sustenta a democracia. Presos às bolhas de interesse (ou câmaras de eco), ficamos reféns de algoritmos ou, o que é mais grave, de notícias criadas intencionalmente para falsear os fatos. Parece que a verdade não é primordial, mas sim quem dá o grito mais alto. Preparados para discordar? Não, isso está fora de moda. Bacana mesmo é odiar.
Nessa disputa cheia de ofensas e promessas de aniquilamento, ninguém tem a humildade de entender que temos muito a ensinar uns aos outros, desde que não enxerguemos guerra onde há diferentes pontos de vista. O espaço da política é necessariamente o da pluralidade. Que falta fazem os clássicos: Santo Tomás de Aquino, no Século XIII, já dizia que ninguém sozinho possui a verdade inteira (esta só caberia ao intelecto divino): “quod unus videt, alius non videt” (o que um vê, o outro não vê). Para ele, se Deus fez os homens sociais, é para que se ajudem uns aos outros pela via da discussão.
Mas, em vez da ajuda mútua na busca da verdade, as pessoas aceitam docilmente a mentira que transforma o adversário na encarnação do mal. Está faltando nesse ambiente viciado um entendimento básico do regime político que, longe de ser ideal, é o “menos pior” (dixit Churchill). Como explica Ian Shapiro, de Yale, a democracia é um antídoto aos monopólios de poder que, com muita facilidade, se tornam reféns do desejo de se perpetuar. Por isso, o debate e a crítica são tão importantes. Devemos encontrar os parâmetros da busca pelo bem comum num ambiente democrático de debates sinceros, não de mentiras.
Mas tudo isso parece cair por terra diante da tia do Zap que, solene, nega o debate e não só acredita na mentira, como a divulga com sangue nos olhos. O que o Direito pode diante dela? É evidente a impossibilidade de controle da circulação das fake news, especialmente por um Tribunal Eleitoral qualquer. O Direito é lento, o mundo digital não. Tudo o que ele consegue é agir depois, a posteriori, quando o estrago já está feito. E o Direito enfrenta somente a superfície do fenômeno, não suas causas subjacentes. Isso não é novidade: Kant, ao classificar os deveres, enxergou que estes podiam ser deveres de direito, quando externos e impostos de fora para dentro, ou deveres de virtude, aqueles que nós exigimos de nós mesmos. O Direito certamente falhará enquanto esperarmos que ele resolva um problema que reside para além da coerção estatal, pois estabelecido numa camada profunda. Como assim?
Quem acredita cegamente nas fake news tem pouca ou nenhuma consideração pelos fatos – justamente o que Hannah Arendt, num ensaio de 1954, elenca como um dos vícios da solidão. O universo das redes sociais, ao contrário do que possa parecer, é o reino do isolamento. Longe do toque físico, temos o toque nas telas. Não se conversa – compartilha-se memes, kkkks, teorias da conspiração e emojis. Do riso ao ódio é um pulo – ou um clique. Arendt, no contexto de suas reflexões sobre o totalitarismo, pergunta se as pessoas que se enamoram pela propaganda totalitária são bobas, malvadas ou desinformadas – perguntas que tantos se fazem hoje diante da tia do Zap. Não são nada disso, ela responde. “Apenas fugiram do isolamento entregando-se aos vícios da solidão”. É da solidão que a conspiração se alimenta, dando sentido e pertencimento a seres atomizados.
Talvez aí esteja uma pista para se entender o problema do Direito nesse ambiente da pós-verdade: a via jurídica tem limites e confiar demais nela pode ser decepcionante. O Direito não toca as profundezas das solidões nem estimula a aproximação. E como disse Arendt, há seis décadas: “a verdadeira compreensão não se cansa do diálogo interminável”. Melhor faríamos, pois, se, das ruínas das falsidades compartilhadas, soubéssemos reinventar a humildade da conversa na construção do bem comum.