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Necropolítica à brasileira

coluna thiago almeida
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“No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por absolutamente contrário às normas da vida, causou nos espíritos uma perturbação […]”. No mundo concebido por José Saramago em “Intermitências da Morte”, de súbito, a morte decidira suspender suas atividades. O mote nonsense abre, então, caminho para uma narrativa rica em reflexões essenciais sobre a existência e as relações humanas, marca indelével da produção literária do autor português.

Da fábula à realidade, o Brasil desse obtuso ano de 2019 também causou nos espíritos (democráticos) algumas perturbações. Numa delas está em foco a mesma personagem: a morte, em especial aquela resultante das ações estatais. Aqui, contudo, ela encarna papel bastante distinto: o discurso (e a prática, em alguma medida) da letalidade alçou protagonismo – na política, na atividade legislativa, nos discursos, no imaginário social etc. Com a chegada ao poder de grupos políticos (no plano federal e estaduais) eleitos a partir da retórica da truculência, a violência e a morte como metas de governo tomam em assalto o ambiente democrático sob o fraudulento rótulo de “políticas de segurança pública”.

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Em reforço, iniciativas no campo legislativo carregam a maliciosa estratégia de se conferir algum verniz de legalidade a um projeto desalmado que nulifica a vida de populações vulneráveis. Algo no sentido do que já percebera o filósofo franco-magrebino Jacques Derrida: a violência não é exterior à ordem do direito, ela ameaça o direito no interior do direito.

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Exemplo eloquente da banalização (seletiva) da morte se viu na tentativa de se criar, no bojo do “projeto anticrime”, excludente de ilicitude (verdadeira licença para matar) a incidir nessas hipóteses – iniciativa que não obteve êxito no processo legislativo. Outros projetos, porém, seguem perseguindo o mesmo objetivo.

Contudo, embora os intentos legislativos não tenham (ainda) logrado êxito, exortações à violência feitas por quem ocupa posições de poder, por si sós, desde o ponto de vista simbólico, autorizam e deflagram práticas violentas. O verbo autoriza. Na sequência, os resultados concretos já se fazem sentir: conforme se extrai do Anuário de Segurança Pública recentemente divulgado as ações letais ocasionadas por agentes públicos batem recordes históricos no país. Agentes de segurança pública, aliás, não menos vítimas da mesma engenharia perversa de “necropoder” desenhada no interior de sofisticados gabinetes pela nova tecnocracia da segurança nacional. A barbárie a todos atinge. É nesse ritmo que avança a “necropolítica” à brasileira.

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Essa dinâmica de exercício do poder contra a vida de pessoas vulneráveis é o que o pensador e filósofo camaronês Achille Mbembe definiu como “necropolítica” (em ensaio de mesmo nome, publicado no Brasil pela Editora N-1). Embebido nos estudos Michel Foucault (biopoder) e Giorgio Agamben (estado de exceção e estado de sítio), Mbembe detecta em seu texto que essa singular forma de expressão da soberania estatal não tem seu projeto central na luta pela autonomia (concepção clássica), mas na “instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações”. O exercício do poder estatal, nesse espectro, converte-se na capacidade de eleger quem pode viver e quem são os “indignos de vida” – na expressão cunhada por Orlando Zaccone.

O anseio dos cidadãos por maior segurança é dos mais legítimos. É albergado, aliás, pela histórica Declaração Universal dos Direitos Humanos (que na data de ontem completou 71 anos). Entretanto, políticas de promoção da segurança, antes e acima de tudo, encontram no respeito à vida um de seus limites fundamentais, o que a Declaração expressa no mesmo texto: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” (artigo 3º). Do contrário, incorreríamos no insuperável paradoxo de admitir a própria morte como estratégia de proteção da vida.

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Na fábula de Saramago, a comunidade se viu condenada, no 1º de janeiro, à imortalidade: “ano novo, vida eterna”. Entre nós, que o ano vindouro, longe de nos condenar ao fardo da imortalidade, permita o resgate, nos corações e mentes, do apreço pela vida humana e fortaleça a consciência do seu primado no Estado Democrático de Direito.

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