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A reeleição no Congresso e a ‘Constituição Geni’

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Por mais que muita gente lhe torça o nariz, é fato: Chico Buarque é um dos mais versáteis artistas brasileiros de todos os tempos. Para além de seu precioso legado musical, o filho de Maria Amélia e Sérgio deixou (e segue deixando) marcas indeléveis na literatura, no cinema e no teatro brasileiros.
Uma de suas canções mais impactantes é Geni e o Zepelim, composta por Chico em 1978, integrante da trilha sonora da peça “Ópera do Malandro”. Geni encarna toda a sorte de violações físicas e morais que um travesti poderia sofrer numa pacata cidade formada por “cidadãos de bem”, sempre prontos a gritar: “- Maldita Geni!”. Até que o temível comandante de um enorme zepelim surge pelos céus e decide explodir aquela gente tão iníqua. Mas, subitamente apaixonado por Geni, o comandante muda de ideia: aceita livrar a todos de “virar geleia” se Geni a ele servisse por uma noite. Geni, inicialmente, resiste ao apelo, ao que a cidade em romaria, temendo a catástrofe, passa a implorar por sua piedade: “- Bendita Geni!”.

No último domingo (6), formou-se maioria no STF para proclamar a impossibilidade de reeleição dos presidentes da Câmara e do Senado. No epicentro da discussão, o art. 57, parágrafo 4º da Constituição de 1988, que veda “a recondução para o mesmo cargo” de presidente eleito. A carta constitucional proíbe, em preceito de inequívoca clareza, a reeleição para esses cargos. Ainda que seja errônea a ideia de que “na clareza, não há interpretação”, e mesmo não ignorando a complexidade das discussões sobre a hermenêutica, a moldura textual da Carta de 1988, neste particular, não oferece maior porosidade linguística. Em suma: o STF respeitou os limites impostos pela Carta.

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Todavia, há dois elementos particularmente incômodos nesse episódio. Um primeiro a indicar que cinco ministros da Corte (vencidos) procuraram engendrar argumentos que permitiam, mais uma vez, o extravasamento do texto constitucional pela via da atividade judicante. Diz-se “mais uma vez” justo porque a postura – até sujeita a discussões em suas motivações, mas indiscutível quanto à sua constatação -, não é novidade no Tribunal. Esse é um dos fatores, aliás, que levou Oscar Vilhena Vieira, em primoroso texto de 2008, a cogitar de uma “supremocracia” em curso no país. No outro extremo, a maioria que se formou (seis votos vencedores), entre outros elementos, albergou-se na necessidade de se fazer cumprir o texto constitucional. Se a Constituição veda a reeleição para a presidência da Câmara e do Senado, que assim seja.

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Espanta, contudo, que alguns julgadores integrantes dessa maioria não tenham sido conduzidos pelo mesmo espírito de deferência ao texto constitucional em tantos outros casos. No caso da “prisão em segunda instância”, por exemplo (melhor seria “execução penal em segunda instância”), ao menos cinco juízes constitucionais que expressaram adesão ao texto constitucional no último domingo não agiram da mesma forma ao serem chamados a interpretar o seguinte preceito: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (CR/88, art. 5º, LVII).

As expressões “ninguém”, “culpado”, “trânsito em julgado” ou “sentença penal condenatória” não são, definitivamente, labirintos linguísticos. Mas nesses últimos quatro anos, quando a questão voltou ao Plenário por diversas vezes, muitos textualistas de hoje surfaram por ondas argumentativas como “debelar o sentimento social de impunidade” e sofismas do gênero. Confira-se, a esse respeito, os Habeas Corpus 126.292 (2016), 152.752 (2018) e as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43, 44 e 54 (2019).

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O papel dos Tribunais Superiores, para muito além de solucionar conflitos, é oferecer ao jurisdicionado um panorama coerente de expectativas em relação ao direito. Qualquer tribunal é, por óbvio, um locus de pluralidade, onde visões divergentes merecem igual respeito e consideração. Contudo, é nocivo à democracia que o texto constitucional seja louvado e ignorado conforme o tema que seja submetido à Corte ou a depender dos humores sociais de ocasião.

Nem “maldita”, nem “bendita”, a Constituição é um projeto de emancipação democrática de gerações de brasileiros. Como na canção de Chico, não merece que se lhe atirem pedras (ou mesmo flores). Ela nos pede simplesmente deferência e, sobretudo, coerência.

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