A Lei Maria da Penha entrou em vigência em 2006, trazendo um importante passo para a proteção das mulheres e meninas em situação de violência doméstica. De lá para cá, tanto outros passos legislativos positivos se deram de forma a trazer maior proteção à referida categoria de vulneráveis. De acordo com a mencionada lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, moral ou patrimonial.
A Lei Maria da Penha é considerada uma das mais avançadas em termos mundiais em proteção do gênero feminino. Mas infelizmente não há o que comemorar. Apesar de tipificada como crime e de se tratar de grave violação aos direitos humanos, a violência segue vitimando um número alarmante de mulheres e meninas.
A pandemia do novo coronavírus trouxe uma série de mudanças na vida e no comportamento das pessoas, dentre elas, a necessidade de isolamento social. Paralelamente, uma série de consequências, para além das questões de saúde e de políticas públicas sanitárias, puderam ser percebidas. Uma dessas consequências é o efeito do isolamento social na vida das mulheres que vivem em situação de violência doméstica, haja vista que passaram a permanecer por maior lapso de tempo no lar conjugal, na companhia do agressor, com o agravamento das tensões no lar.
O aumento da violência contra a mulher e contra meninas foi relatado em todo o mundo, inclusive na ONU – e não foi diferente no Brasil, em que dados nacionais anunciaram mais de cem mil denúncias de violência contra a mulher em 2020 (números divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Em alguns estados brasileiros, o aumento chegou a quase cinquenta por cento durante a pandemia. Isso sem levar em consideração as agressões não registradas.
Como forma de tentar conceder maior eficácia e efetividade às denúncias de violência doméstica durante a emergência de saúde pública causada pela pandemia, algumas leis foram editadas, determinando, dentre outras situações, que o atendimento à vítima seja realizado de forma presencial, bem como que lhe seja propiciada a possibilidade de denúncias e registros por meio eletrônico e por telefone, inclusive por WhastApp, além de exame de corpo de delito no local em que se encontrar a vítima. Ainda assim, os números continuam a subir.
A legislação em voga parece não ser suficiente para conter a violência doméstica, mas a denúncia é ponto crucial para que essa realidade possa mudar. Políticas públicas transversais são imprescindíveis. O trabalho deve ser realizado, também, com o agressor. Essa função não é exclusiva do estado; a sociedade também tem a sua parcela de responsabilidade e dela deve se conscientizar. Não basta a punição penal; a conscientização é necessária, o trabalho na raiz do problema é primordial.
Estudos constatam que a violência contra a mulher está intrinsicamente ligada a valores culturais machistas e patriarcais ainda enraizados na sociedade, sendo, portanto, um produto cultural, social e também histórico; as desigualdades de poder e de direitos, assim como a objetificação e a dominação, foram, e ainda são, enfrentadas pelas mulheres. Estudos da psicologia demonstram que o violentador também é vítima, pois vítima de seu sofrimento que gera a violência, vítima de seu narcisismo, vítima da tentativa de reafirmar a si mesmo.
Não, não se está aqui a defender ou justificar os atos perpetrados pelo agressor. Como afirmou a filósofa Hannah Arendt, a violência possui natureza instrumental e pode se apresentar com certas justificativas, que, entretanto, nunca lhe imprimirão legitimidade.
A questão que estou aqui a pontuar refere-se ao fato de que a violência é tratada superficialmente, sem reflexão profunda acerca de suas causas e pautando-se em explicações simplistas para realidades tão complexas. Para problemas multifacetados, são necessárias soluções multifacetadas. Por óbvio, a punição é necessária, mas o tratamento do agressor é medida que se impõe se realmente se pretende tratar a raiz do problema.
Não se calem! Denunciem!
*Canais de denúncia: Disque 100 (Direitos Humanos), que também atende por WhatsApp; Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher); Aplicativo Direitos Humanos Brasil.