Desde os primeiros “efeitos” da pandemia da Covid-19 no Brasil, essa coluna – Fiel da Balança -, através de todos os seus e suas colunistas, passaram a analisar como a sociedade brasileira e mundial tem lidado com esse fenômeno e como o direito tem regulado, ou não, as relações nesta realidade com ares distópicos saramaguianos – relembrando a analogia antes realizada com o “Ensaio sobre a Cegueira”, de José Saramago.
Não há como negar que nossas rotinas mudaram durante esses cinco, seis meses de isolamento, mas há aqueles e aquelas que insistem em dizer que estamos diante de um “novo normal”, que a pandemia do novo coronavírus mudou para sempre a forma como nos relacionamos e a forma como as sociedades se organizam.
Analiso o fenômeno pandêmico de forma um pouco distinta. Para que surja um “novo normal” é preciso que se estabeleçam novas bases, senão somente estamos diante de “um museu de grandes novidades”, como diz Cazuza, que aqui significa o convencional com uma roupagem mais digital, repleta de fluxos informatizados, mais distanciada afetivamente e com abismos sócio-raciais cada vez maiores e mais brutais, mas que não inova, não nos torna melhores.
Concordo que não é preciso que o velho deixe de existir antes que o novo possa surgir, a história nos ensina que os ciclos são repletos de coexistências, mas ela também nos mostra que o novo, mantendo todas as velhas estruturas, não tem nada de novo – a política brasileira está repleta de exemplos de mudanças de governos e de partidos, de siglas e de coligações que não apontam para mudança ou “novo” – mas essas são discussões que não cabem neste momento.
Retornando ao “novo normal” da sociedade pandêmica e pós-pandêmica, é possível perceber que suas “novidades” se encontram no agravamento das violências e desigualdades antes encontradas no cenário social brasileiro e global. Durante a pandemia, a violência contra a mulher tem aumentado de maneira alarmante em relação ao último ano. No mês de abril, as denúncias de violência doméstica aumentaram em 40%.
Em relação à violência policial, o mesmo cenário de agravamento da normalidade se verifica durante a pandemia, com um incremento no número de mortes pela polícia de 13% no Rio de Janeiro e de 23% em São Paulo.
Em relação ao perfil de óbitos da Covid-19, morrem 40% mais pessoas negras pela doença do que pessoas brancas, de acordo com os dados divulgados pelo Ministério da Saúde e pelos estados, fruto da profunda desigualdade sócio-racial que estrutura as relações no Brasil.
Para o Brasil real, que não se enxerga das casas dos condomínios de luxo ou das coberturas dos prédios das zonas nobres das grandes cidades, não há um “novo normal”, pois os corpos matáveis continuam sendo os mesmos. As violências, os riscos e as mortes continuam atingindo as mesmas pessoas que atingiam antes da pandemia, e com apetite mais voraz.
A dinâmica de exploração e de violência somente se agravou conforme determinadas componentes da maquinaria necroeconômica foram alteradas, tornando possível a nós enxergar algumas contradições, como o fato de Jeff Bezos – dono da Amazon – ganhar 13 bilhões de dólares em um único dia durante a pandemia, enquanto trabalhadores rodoviários precisam realizar paralisação para receber tíquete alimentação e cesta básica, fundamentais para a manutenção e sustento de suas famílias.
Com pandemia ou sem pandemia, a canção de Cazuza do final da década de 80, “O Tempo não Para” não perde sua atualidade, e continuamos a ver “o futuro repetir o passado”.