No último dia 14, Kismara Brustolin, juíza substituta da Vara da Justiça do Trabalho de Xanxerê (SC) protagonizou episódio que a sugou para o epicentro do falatório (real e virtual) brasileiro. Ao presidir a tomada de depoimento de uma testemunha (Leandro), a magistrada exaltou-se com o fato de o depoente haver relutado em valer-se do pronome de tratamento “excelência”.
No vídeo “viral”, a juíza começa interrompendo o depoimento: “Senhor Leandro, eu chamei a sua atenção. O senhor tem que responder assim: ‘O que a senhora deseja, excelência?'”, diz. Em seguida, ela recrudesce o tom: “Responda, por favor!”. Nesse instante, Leandro diz não ter entendido a exortação da juíza, chamando-a de doutora, quando Kismara dispara: “O senhor tem que responder assim: ‘O que a senhora deseja, excelência?'”, impondo à testemunha que repita a frase.
Questiona, então, Leandro: “Eu sou obrigado a isso? Desculpa”, ao que recebe então uma espécie de ultimato judicial: caso não seguisse a anunciada liturgia, seu depoimento seria “totalmente desconsiderado”. O relato testemunhal, contudo, prosseguiu sem concessões ao tratamento protocolar, sendo bruscamente interditado por uma ordem da magistrada para que Leandro parasse de falar, quando a presidente da sessão o chama de “bocudo”. E o ultimato se cumpre: a juíza interrompe prematuramente o depoimento testemunhal afirmando deseducação do depoente.
Esse episódio é um manancial inesgotável de mergulhos os mais diversos que poderiam ser feitos sobre a microfísica das relações sociais e de poder no país. Difícil até eleger por onde começar. Na camada mais evidente há, aí, uma questão jurídica e outra sociológica que se apresentam.
A jurídica é a alquimia capaz de transformar o devido processo legal em massinha de modelar a depender do “gosto do freguês”: lá se vai mais um atropelo ao direito ao contraditório e a tantas outras garantias vitimadas nesse nosso cotidiano atravessado por práticas voluntaristas descomprometidas com o “rule of law”.
A sociológica permite ver que o episódio é retrato em cores vivas de uma determinada idiossincrasia visível a olho nu em nosso tecido social: o autoritarismo. Em “Você sabe com quem está falando? Estudos sobre o autoritarismo brasileiro”, Roberto DaMatta expõe toda a pujança e a força cultural do autoritarismo que nos constitui historicamente. E permanece. Assim, ritos – como os tratamentos protocolares – oscilam entre a manifestação de polidez e reforço do esqueleto hierarquizante de nossa sociedade.
No campo jurídico e político, não são raros os relatos de gente que não hesita em performar empáfia e truculência, distribuindo “carteiradas” e ofensas e tantos e tantas, reforçando esse nosso “ethos” dolorosamente autoritário.
Depois de assistir ao “viral”, que nos fitemos diante do espelho. Podemos nos surpreender ao ver a própria imagem refletida do outro lado e perguntar: “Você sabe com quem está falando?”.
- LEIA MAIS a coluna Fiel da balança aqui