Escuro é buraco!
Estava me lembrando esses dias de um amigo da minha família, o Ézio, que morreu quando eu era ainda bem criança. Era um negão (como assim mesmo se descrevia), de quase uns dois metros de altura, riso frouxo e línguas sem papa alguma. Nestes tempos em que ficou fácil destilar ódio por trás de telas e touchscreens, tenho medo do que um cara como ele, negro, gay e soropositivo, seria obrigado a passar nas mãos dessa sociedade tão preconceituosa e violenta, mesmo quando a porrada não vem dos punhos, mas das palavras. Por outro lado, se minha memória não falha, o Ézio tinha duas facetas muito em falta nesses nossos dias: sabia rir dos próprios problemas mas, ao mesmo tempo, não levava desaforo para casa.
Minha infância tri-riense teve vários momentos exemplares em que essas duas coisas se combinavam com maestria. Quando ia visitar a gente, tomava meu irmão e eu, cada um pelas mãos, e dizia à minha mãe: “Amiga, o negão vai dar uma volta com as crianças, tá?! Pode deixar, que se perguntarem se eu sou sequestrador ou empregado, vou dizer que sou o pai”, e saía com a gente, rindo que só. Um de seus bordões clássicos surgia sempre nas conversas em que as pessoas iam cheias de dedos, munidas de um preconceito travestido de linguajar “politicamente correto” (isso nos anos 1980, quando nem estava na moda): “Ele era um cara igual a você assim, meio escuro…” Ao que o Ézio respondia, invariavelmente: “Escuro é buraco, eu sou é preto!”, dizia ele firme e com orgulho, mas sem perder a piada jamais, ainda que às custas do amigo, desarmado pela réplica.
Na minha opinião de eterna amadora diante da vida, acredito que a hipocrisia em que vivemos hoje precisava de mais Ézios, muitos deles. Os filhos que ainda não tenho não poderão assistir Tom & Jerry na TV, porque o desenho foi considerado violento demais. Não saberão que o Mussum era um negro cachaceiro que enchia a cara de mé na TV aberta antes das dez da noite, e fez a alegria da infância da mãe deles. Ouvirão, com certeza, alguma versão de “Chapeuzinho Vermelho” em que o lobo opta, sozinho, por se regenerar, criando a ilusão de que os problemas da vida se resolvem assim, sempre pelo caminho mais fácil e indolor. Nem acho que isso tudo, por si só, seja lamentável ou desnecessário: todo combate à violência e ao preconceito é pouco. Mas é no mínimo irônico que, justamente quando estamos cercados de preocupações como as que citei, absurdos intoleráveis saltem a nossos olhos diariamente.
Estamos tão rodeados por um politicamente correto que em nada (ou quase nada) acrescenta, que ele é mais escasso do que água na Cantareira onde realmente importa. Um dos retratos mais sujos dessa realidade ganhou a mídia essa semana: o hino de recepção dos alunos de medicina da USP às suas calouras, impublicável pela quantidade de palavras baixas que remetem ao abuso sexual e à objetificação das novas estudantes da universidade. “Morena gostosa”, “loirinha bunduda” e “preta imunda” – sim, “preta imunda”! estou repetindo porque sei que é inacreditável – são apenas amostras das boas-vindas que nossos futuros médicos tradicionalmente dão às novas alunas. Mais uma vez: “preta imunda”?! É de cair vocês-sabem-o-quê da rima. Uma afronta ao ser humano, para não me prender a argumentações de machismo e racismo.
Fiquei pensando no que aconteceria se baixasse o santo do Ézio em uma dessas calouras, principalmente se fosse preta – como ele, e não “escura”, como a noite – no linguajar do próprio. Nem precisei matutar muito e a resposta veio prontinha, como tenho certeza que seria: “Imundo é seu preconceito, veterano!”. Saudades, Ézio.