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Questão de pele

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Desde a minha infância, honro a tradição carnavalesca de usar fantasia (amo!) nem que seja uma vezinha, e torcer pela Mangueira, hábito herdado de minha avó (belamente recompensado este ano), que não ia para a cama enquanto a Verde-e-Rosa (insira aqui sua piada com “Mangueira entrar”) não cruzasse a Avenida, ainda que entre cochilos no sofá. Quando tinha uns 8 anos, cismei que queria ir para o “grito de carnaval” do colégio vestida de “bailarina da Mangueira”.

Dado o tema inexistente, lá foi minha mãe para a máquina de costura, mesmo sendo mais dominada pela bicha do que o contrário. Amei a roupa: uma saia de tule verde e rosa bem armada e – dado o massacrante calor da minha Três Rios – um top nas mesmas cores, para que eu não cozinhasse em um maiô. Afinal, eu era criança, e era carnaval, gente! Fui toda feliz e munida de confetes, serpentinas e brilhos para a festinha da escola, achando que estava abafando com minha fantasia feita sob medida, só para ouvir, de alguns amiguinhos e amiguinhas, gritinhos de “gorda”, “baleia”, “bailarina do Fantasia” (aquele desenho da Disney com hipopótamos dançando balé) e outras delicadezas que a gente ouve e retruca com “é coisa de criança”. E até é mesmo.

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Mas eu nunca me esqueci dessa “brincadeira infantil” – claro, do auge da minha infância branca e privilegiada de classe média. Talvez nem tenha começado exatamente aí – porque me lembro de arrebentar a sapatilha de tanto dançar, a despeito dos insultos -, mas passei o resto da infância, toda a adolescência e boa parte da vida adulta tendo uma relação muito destrutiva com meu corpo e minha aparência. Meu maior temor era ouvir de novo que era gorda, estando ou não, que era feia, – e ouvi!- e isso desencadeou uma série de dietas loucas, remédios perigosos e jejuns voluntários que muito ameaçaram minha saúde, e me privaram de uma relação sadia e feliz comigo mesma por boa parte da vida. “Mas é coisa de criança!”.

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Não, não acho que temos que censurar o carnaval. É hora de chutar o balde para as convenções? É, sim. O “pai Alladin” que fantasiou o filho negro de “Abu”, macaco e fiel escudeiro do herói – sem máscara, usando apenas as roupas do personagem -, teve a intenção de causar algum sofrimento ao filho? Certamente não. Mas nem tudo que acaba na Quarta de Cinzas vira Fênix e ressurge com mais beleza e poder. No futuro, quando o menino for chamado por seus colegas de escola ou insultado na rua, já adulto, xingado de “macaco”, ele não se lembrará que Abu é “o melhor amigo de Alladin” e dos carinhos dos pais ao fantasiá-lo. Restará a figura de um animal a que está sendo comparado – e desculpe meu pessimismo, estará sujeito a este tipo de preconceito por toda a vida.

“O racismo está nos olhos de quem vê”, rebateram diversos internautas, defendendo os pais da criança, que – repito – acredito genuinamente: tiveram a melhor das intenções. O mesmo argumento é usado em prol da “nêga-maluca” e outras caracterizações negras “tradicionais” na festa de Momo : “Você que está vendo racismo”. Discordo plenamente. O racismo não está nos olhos de quem vê, está na pele de quem sente.

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