Em JF, Guilherme Smith lembra peregrinação para escapar da Ucrânia
Jogador de futebol, juiz-forano que fugiu da guerra no país do Leste europeu, diz ter sentido medo de não voltar a ver seus pais
“Nunca vou esquecer a agressão que sofri de um policial, que me desferiu um tapa muito forte no peito”, recorda-se o atacante Guilherme Smith, de 18 anos, jogador juiz-forano que conseguiu escapar da guerra entre Rússia e Ucrânia e hoje está seguro com sua família no Bairro Nossa Senhora Aparecida, na Zona Leste de Juiz de Fora, onde, ao lado do pai, o ex-jogador do Sport e do Tupi, Luiz Cláudio de Carvalho, o Claudinho, recebeu a Tribuna. O jovem atleta, que atua no futebol da Ucrânia, desembarcou no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro, na última sexta-feira (4), às 18h30, depois de deixar, na quinta, a cidade de Cracóvia, Sul da Polônia, em direção a Amsterdã (Holanda), de onde, junto com seus companheiros de time, embarcou em um voo de regresso ao Brasil.
Segundo ele, a agressão sofrida por parte do policial perto da fronteira para deixar a Ucrânia vai ficar marcada para sempre em sua memória. “Eu não entendi muito. Estávamos todos em pânico e muito traumatizados. Eu nunca tinha recebido um tapa assim no peito, porque sou um cara muito tranquilo, não sou de arrumar confusão com as pessoas, estou sempre em paz, extrovertido e sendo amigos de todos. Naquele momento, tomar aquele tapa muito forte no peito, me deixou em pânico. Fiquei imóvel até conseguir me mover para o lado. Se eu continuasse na frente dele (o policial), ele podia pensar que eu queria enfrentá-lo. Ele estava com um fuzil muito grande. Se ele disparasse um tiro ali, eu estava longe de tudo, no meio do mato, e ele poderia jogar meu corpo e ninguém iria saber”, relatou o jogador, lembrando-se da saga que foi escapar da guerra na companhia de seus amigos.
Guilherme passou cerca de seis dias sob os ataques russos. Quando explodiu a primeira bomba, o atleta já estava escondido em um bunker e não escutou nada. “Eles nos orientam para não ver e tentar não escutar nada, porque vamos para debaixo da terra nos esconderijos onde ficamos em segurança. Assim é melhor não ver, nem ouvir, porque é um trauma muito grande”, relatou. Ao longo de sua fuga de Zaporizhia, cidade onde morava, houve um momento em que pensou que nunca mais veria seus pais, que poderia morrer. “Isso aconteceu lá na fronteira, onde passamos muito frio. As pessoas estavam enlouquecendo, estavam agressivas umas com as outras, e, quando pegamos a carona para voltar para Lviv, começou a nevar. Acredito que muitas pessoas tenham morrido de frio.”
O juiz-forano estava há 8 meses na Ucrânia. Segundo ele, era um momento muito especial de sua vida, jogando para o Zorya. “Eu estava muito bem, fazendo gols a cada dia mais, me adaptando, porque a adaptação lá é bem difícil. Mas fui com o propósito de vencer, de fazer minha carreira decolar. Estava pensando em fazer uma grande temporada este ano, mas acaba que estourou a guerra e fiquei sem entender nada”, afirmou. Ele ressalta que a vida estava acontecendo de forma normal, em Zaporizhia. “Todo mundo andava na rua normalmente e, de repente, eu acordo de manhã com muitas ligações. Havia gente com muita preocupação do que estava acontecendo, e fiquei sabendo que tinha começado a guerra. Logo, comecei a arrumar minhas malas, muito desesperado, não sabendo o que fazer. Tem dois jogadores brasileiros que jogam comigo lá no clube e tem a esposa do Juninho (jogador mineiro de Cataguases) e o filho dele que estavam comigo. Fomos todos para a casa do Juninho e ficamos todos unidos lá, porque acreditávamos que cinco cabeças pensariam muito mais que uma.”
Reunidos, eles decidiram comprar produtos e alimentos, porque intuíram que, posteriormente, teriam dificuldade com os mercados. “Estavam todos lotados. Todo mundo comprando alimentos, e queríamos também comprar alimentos para não faltar depois. De imediato trocamos o dinheiro, porque recebemos na moeda de lá e fomos trocar em dólar, porque não sabíamos o que poderia acontecer. Podia acontecer de ter que irmos para outro país. Estávamos muito desesperados e, sem pensar muito, decidimos, naquele dia, quando a guerra estourou, ficar em Zaporizhia escondidos dentro de casa. No dia seguinte, ao amanhecer, decidimos pegar o trem, que ninguém falava qual era o destino dele. Mas, no desespero, embarcamos. Havia muita confusão, muita correria, e o trem estava muito cheio. Depois de estar lá dentro, os funcionários não falavam para onde ele iria, porque, a qualquer momento, podia parar em razão da guerra, mas chegamos em Lviv, que era o destino final e era onde queríamos chegar”, relatou.
Medo, cansaço e frio no caminho até a fronteira
Em Lviv, Guilherme e seu grupo logo pensaram em deixar a cidade, para alcançar a Polônia, saindo da Ucrânia. “Saímos da estação de trem e pedimos um carro para nos levar até um pouco próximo da fronteira, mas tinha muita fila de carro e tivemos que descer logo no início do trajeto sem imaginar quantos quilômetros eram para chegar até a fronteira. Andamos dez, vinte, trinta, quarenta quilômetros e não aguentamos mais. Tivemos que jogar fora vários acessórios nossos, porque não aguentávamos mais carregar. As malas ficaram todas quebradas, mas acabou que andamos até completar 60 quilômetros, chegando a quatro quilômetros antes da fronteira, onde fomos barrados por policiais ucranianos.”
Para Guilherme, esse foi o trecho mais tenso da fuga e foi quando ocorreu a agressão. “Estava uma confusão, correria para lá e para cá, as pessoas estavam enlouquecidas. Quando os policiais não deixaram a gente passar, tivemos um desânimo absurdo, porque não sabíamos o que fazer. Como andar novamente 60 quilômetros para voltar? Entramos em desespero. Havia muita briga, as pessoas estavam muito agressivas e com muito medo. Achamos que iria acontecer algo de muito ruim com a gente já tão próximos da fronteira.”
Guilherme e seus amigos tiveram que passar a noite nesse lugar, com um frio de menos quatro graus abaixo de zero. “Com certeza foi a pior noite da minha vida, algo surreal que não desejo para ninguém. Mas tivemos que voltar para Lviv. Lá ficamos mais dois dias. Trens eram cancelados. As pessoas prometiam levar a gente, mas não conseguiam. Ficamos sem esperança de nada.”
Porém, como contou Guilherme, nesses dias escondidos, após o retorno para Lviv, algumas pessoas conseguiram ajudá-los a sair e chegar até a Polônia. “São pessoas abençoadas, que até hoje não sei quem são, mas conseguiram atravessar junto com a gente.”
Gratidão por estar em casa
Em Juiz de Fora, o jovem atleta disse estar muito feliz em casa. “Já estava muito ansioso no avião para chegar e ver meu pai e minha mãe, meus avós, meu irmão que ainda não vi, porque ele está em viagem, e estou doido para vê-lo. Quero agradecer a Deus por ter abençoado a minha vida, às pessoas do Brasil, porque o apoio dos brasileiros foi surreal. Todos torcendo. Todos sentindo nossa dor, todos orando. Eu fiquei muito feliz com a chegada ao aeroporto, com pessoas em uma festa incrível. Eram pessoas que eu não tinha ideia de quem eram, mas estavam lá nos esperando. Foi muito legal.”
Para o futuro, ele ainda não sabe como vai ficar sua carreira. “Estou deixando nas mãos dos meus empresários e nas mãos de Deus e creio que já tem muitas propostas, mas eu ainda vou sentar com meus empresários, colocar a cabeça no lugar, para voltar mais forte, porque estou doido para jogar futebol, fazer o que eu mais amo”, disse emocionado.
Sobre a experiência de ter sobrevivido a uma guerra, o jogador disse que refletiu muito sobre o valor que as pessoas devem dar à família. “É preciso dar valor para as pessoas que amam você e aproveitar cada momento de sua vida, porque a gente não sabe o que pode acontecer. Dar valor para coisas grandes e pequenas. Viver, porque lá eu estava sendo feliz, estava realizando meu sonho e, do nada, acontece uma guerra, de acordar sem saber se iria continuar vivo. Quero pedir às pessoas para aproveitarem bem suas famílias”, deixou como recado para todos.