Ano do passado? Não, ano que nos assusta com o passado. Curioso é que o passado não deveria assustar, deveria ser tipo um livro na estante que inaugura a fileira das obras importantes. Aquele lugar onde procuramos os indícios do que houve…
Não devia nos assustar, embora, ultimamente, o passado nos tenha visitado como o algoz para maus aprendizes. Entre tragédias e farsas seguimos de certa feita abismados com sua capacidade de retorno, fora dos livros. Muito por culpa, talvez, de estarem fora dos livros lidos. Alimento lento para ledos enganos.
Fato é que continua sendo passado, continua a ser o tal livro fonte manancial na estante e também, por força de nós mesmos (uns bem mais que outros), continua a ser algoz. Os retrocessos na nossa pomposa civilidade são, quem vive sabe, os algozes em aumento de carga horária. Costas recebendo açoites, civilização que se acha ou achava em avanço ininterrupto.
Acontece que nem mais no discurso carregado de eufemismos pra mascarar a realidade a busca por outro porvir parece segura. Mesmo nas linhas das leis, ainda que embaçadas para evitar a fadiga dos que, ao se equivalerem aos demais, acham que perdem seu banquinho. Nem nesse embaço de “igualdade”, os que se achavam seguros pela democracia míope estão dormindo com a paz dos “justos”.
Caminhantes nas margens e quebradas da nação estamos aí. Nosso pavor aumenta. Se juntam na caminhada, o pavor dos “justos” que à noite dormiam quase tranquilos.
Nossas bananeiras voltando a ser saldadas internacionalmente. Nossa origem, sem sequer réstia de humanidade pra “inglês ver” sendo dizimada.
Nossas dívidas, ao invés de pagas, nos sendo novamente informadas como consequência de nossa cor indolente e jeito malandro, agiotadas na paga inversa. Das terras à devassidão das gentes e da natureza. Da liberdade do ser à imposição do não ser ao custo da vida ou do armário prisão do corpo. Corpo, esse território íntimo que alguns, muitos meu deus, se acham donos. E por isso matam, espancam mulheres, LGBT’s, estupram seus corpos.
Nossos corpos.
Enquanto as moedas se concentram, as jornadas se multiplicam e o descanso merecido é postergado por contas feitas ao custo do champanhe dos abastadados 1% que, numa louca inversão de luz e sombra, aparecem como a imagem de uma gente que se acha na média em prestações a perder de vista.
Nesse plano onde a terra é plana, é mais fácil construir muros e acertar a mira do revólver. Os templos podem ser mais altos tapando a vista de quem ignora o horizonte infinito. Tudo é relativo, e a verdade não precisa do crivo dos fatos, das transpirações inspiradas. Tudo é questão de opinião, inclusive a opinião de que a força carrega de verdade a opinião de quem a possui.
Da fileira dos livros importantes, ainda sobrevivem as grandes sínteses prontas para o destrinchar. Na quebrada tem biblioteca feita de poesia falada, comunhão de iguais no “modus sobreviver”. No quarto de despejo, iluminação. No morro, quem trabalha quer viver e vive, como já disse o poeta, como a afronta de quem com dignidade inigualável coloca a mesa do café do patrão.
Não seremos tolos de não temer. Mas manteremos o molde imposto na perversidade? Não olharemos de quem são as mãos de quem produz? Na quebra do molde seríamos então nós a estarmos assustados? dois mil e dezenove, ano do terror ou da absolvição do medo.
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