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Nada é o que parece

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O presidente Jair Bolsonaro assinou, no dia 11, projeto de lei que autoriza os pais a aderirem ao homeschooling, tirando seus filhos da escola e assumindo a responsabilidade pela sua educação em casa, incluindo a elaboração do projeto pedagógico. O que pretende o Governo com essa medida que não faz o menor sentido num país tão atrasado na educação de milhões de jovens que dependem das escolas públicas até para comer?
Segundo o “Instituto Mises”, “em termos estratégicos, não há nada mais precioso que o controle da educação”. Estará, então, o Governo federal ensaiando a privatização da educação, como defende o “Mises”, e assim cumprindo a agenda ultraneoliberal que vem sendo imposta ao país e que poderá causar danos irreversíveis às nossas mais legítimas aspirações de soberania?

Vale a pena recordar a pesquisa “Analfabetismo no Mundo do Trabalho”, divulgada em agosto de 2017 pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, que revelou que apenas 8% dos brasileiros entre 15 e 64 anos dominam, de fato, o português e a matemática. A pesquisa separa a população em cinco grupos: analfabeto, rudimentar, elementar, intermediário e proficiente. Alguém “proficiente” é capaz de entender e elaborar textos de diferentes tipos, incluindo editoriais de jornal ou artigos de opinião, além de ser capaz de opinar sobre o posicionamento ou estilo do autor do texto. É também apto a interpretar tabelas e gráficos. Destaque-se que nesse seleto grupo apenas 8% dos brasileiros na faixa etária acima citada marcam presença.

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Em tese, seriam esses 8% os capacitados a aderirem ao homeschooling. Só que eles, obviamente, situam-se na classe média mais bem remunerada, que pode pagar escola de qualidade. Assim, o homeschooling só seria “adequado” aos pobres que frequentam as esculhambadas escolas públicas. Porém as famílias desses alunos, segundo a mesma pesquisa, estariam situadas, na melhor das hipóteses, no maior grupo entre os brasileiros, que é o “elementar”, com 42%, que abriga os que interpretam textos e números de forma superficial, não sendo capazes de se comunicar facilmente através da escrita. Compute-se ainda a sua provável desestruturação familiar. Como eles elaborariam então um projeto pedagógico e repassariam conhecimentos a seus filhos?

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Não dá para improvisar. Parecer emitido em 2000 pelo Conselho Nacional de Educação, a pedido do Conselho Estadual de Educação de Goiás sobre a validação do ensino domiciliar, conclui que a educação é dever do Estado e da família, “porque a família, só ela, jamais reunirá as condições mínimas necessárias para alcançar objetivos tão amplos e complexos”. Destaca também que a solidariedade humana e a tolerância recíproca, que fundamentam a vida em sociedade, “não deverão ser cultivadas no estreito (no sentido de limitado) espaço familiar. A experiência do coexistir no meio de outras pessoas e a oportunidade do convívio com os demais semelhantes são situações educativas que só a família não proporciona e que, portanto, não garante o que a lei chama de preparo para a cidadania plena”.

De acordo com o site Agência Brasil, no ano de 2018, foram registradas 48,5 milhões de matrículas nas 181,9 mil escolas de educação básica. A maior parte dos estudantes está na rede pública, cerca de 39,5 milhões, 81,44% do total. Diante de um número tão expressivo de alunos e considerando-se toda a problemática da educação pública no Brasil, é tábula rasa a afirmação de Carlos Roberto Jamil Cury, ex-presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, de que “devíamos pensar em trazer os pais para a escola e não em tirar os filhos dela”.

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Dá para entender o ensino domiciliar em situações especiais, únicas, em exceções em que o educando pode até ser beneficiado, mas o projeto de lei de Bolsonaro que o regulamenta como se representasse um ganho no âmbito da educação pública precisa ser analisado num contexto onde nada é o que parece.

O festival de sandices, os atos completamente descolados da realidade brasileira e o nada republicano minto/desminto que vem sendo sistematicamente praticado pelo Governo suscitam a hipótese de que estamos no meio de uma guerra semiótica para nos provocar dissonância cognitiva e consequente desinteresse pelas coisas públicas, coisas de altíssimo valor, alvos dessa suposta guerra, literalmente. Pense nisso.

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