A Lei nº 14.835 instituiu o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura, previsto no artigo 216-A da Constituição Federal como um sistema de gestão de políticas públicas de cultura. Apesar de ser esperada há mais de uma década e ser um importante marco para o setor, a lei parece não ter tido tempo de maturação suficiente e traz disposições que ensejam preocupação. De início, a norma traz conceitos que não condizem com a técnica jurídica, além de se localizarem muito mais no campo da política do que do direito. Não que não sejam definições importantes, mas a utilidade prática de estarem legalmente definidas é questionável.
Em seguida, ao determinar o papel do Estado na cultura, a norma diz que cabe a ele garantir as condições indispensáveis ao pleno exercício dos direitos culturais. No entanto, erra ao atribuir ao Estado a tarefa de identificar e coibir “atividade de cunho político-partidário ou personalista”, ação proibida ao Estado brasileiro por força de vedação à censura. Não suficiente, a norma vai além e determina que o pleno exercício dos direitos culturais não deve possuir caráter político-partidário ou personalista, bem como não pode afrontar a dignidade e a moralidade pública ou incitar a prática de crimes. É claro que se alguém incita ato criminoso será punido pelo artigo 286 do Código Penal. Mas o que é, afinal, um “exercício de direitos culturais político-partidário”, “personalista” ou afrontoso à “dignidade e moralidade pública”? Caberá ao Estado essa definição?
O exercício dos direitos culturais pelas pessoas é livre, intrinsecamente relacionado ao direito fundamental de liberdade de expressão artística. Não é possível, portanto, que a legislação infraconstitucional diga como esses direitos podem ou não ser exercidos sem recair em atos de censura. As limitações aos direitos culturais estão na própria Constituição Federal e somente cabe a ela dizer como eles podem ou não ser exercidos.
Apesar da intenção expressa na justificativa da emenda fosse evitar que o Estado apoiasse financeiramente manifestações artísticas e culturais que apresentassem tais caraterísticas, o que se criou foi um verdadeiro cerceamento inconstitucional à liberdade de expressão artística e cultural, bem como uma atribuição estatal, também inconstitucional, de coibir o exercício de direitos culturais que, a partir da análise subjetiva do próprio Estado, tenham caráter político-partidário ou personalista.
A longa espera pela lei do SNC, bem como a urgência de sua aprovação, não pode justificar disposições legais contrárias à Constituição e aos direitos fundamentais. Urgente, portanto, a análise crítica da norma e sua adequação às disposições constitucionais, em especial às relativas aos direitos culturais.
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