A tradição nos ensina que se pode ler o texto bíblico para além do seu sentido imediato. Além do sentido literal (sensus litteralis), há o sentido espiritual (sensus spiritualis). O sentido espiritual desdobra-se, por sua vez, em sentido alegórico, moral e anagógico. O sentido literal não deve ser confundido com o sentido literalista, próprio das leituras fundamentalistas. O fundamentalismo bíblico não lê o texto no seu contexto, não se vale de boa exegese nem de mediação hermenêutica. Desconhece os gêneros literários e confunde muitas coisas, assumindo, às vezes, como histórico o que de fato não o é.
Os 11 primeiros capítulos da Bíblia, por exemplo, não tratam de historiografia. Na Bíblia há, sem dúvida, relatos de alcance verdadeiramente histórico, mas é preciso distinguir uma elaboração teológica (que é verdadeira no seu nível próprio) de um relato propriamente histórico. Muitas vezes também o texto bíblico traz um fundo histórico com elaboração teológica por cima. O sentido literal autêntico é o sentido que o autor humano quis dar ao texto ou que lhe foi possível dar. Como a Bíblia tem autoria divina e humana, a mensagem divina passa pelo sentido visualizado pelo autor humano.
Assim, é imprescindível buscar o sentido intencionado pelo autor humano no seu contexto histórico-cultural e circunstâncias próprias. No entanto, nem sempre é fácil atingir esse sentido. Por isso, a exegese bíblica é uma ciência muitas vezes árdua. Como quer que seja, a Igreja tem a sua palavra de autoridade sobre passagens bíblicas fundamentais. Como pessoas de fé, lemos a Bíblia com a Igreja.
O sentido espiritual da Escritura justifica-se pelo plano global de salvação revelado por Deus e proposto pela Igreja, cujo sentido é fundamentalmente espiritual e transcendente. Santo Tomás de Aquino insistiu em que o sentido espiritual deve, de alguma maneira, derivar do sentido literal e ser regulado por ele, para que se evitem imaginações descabidas em torno do texto.
Desdobrando o sentido espiritual, o sentido alegórico procura a verdade mais ampla para a qual o texto pode apontar, relacionada à economia da salvação definitiva em Cristo. Personagens e acontecimentos são tomados como figuras de realidades superiores. É assim que a passagem do Mar Vermelho pode ser lida como figura da nossa passagem pelas águas do batismo. Adão é visto como figura de Cristo, novo Adão.
Do mesmo modo, o relato da Arca de Noé pode ser lido como uma figura dos tempos da Igreja, que é como uma arca de salvação. Ainda: os relatos das multiplicações de pães e peixes por Jesus, além do seu sentido literal, apontam também para um sentido espiritual. A tradição da Igreja viu no milagre do pão multiplicado a figura do sacramento da Eucaristia, que é o Pão de Deus para a vida do mundo. Participando do mesmo pão no sacramento, tornamo-nos um mesmo um mesmo corpo – o Corpo sacramental de Cristo faz o seu Corpo eclesial.
Com o sentido moral procura-se identificar como o cristão deve agir. Um exemplo pode ser o relato da mulher de Ló, que, instada a não olhar para trás, desobedeceu e transformou-se numa estátua de sal. Isso sugere que se deve olhar para frente, para o futuro de Deus que nos liberta, já que olhar para trás ou ficar preso no passado pode paralisar a vida.
O sentido anagógico é aquele que diz respeito à grande meta para a qual nos dirigimos, a ascensão do nosso espírito para Deus e a nossa eternidade em Deus. Assim, a Igreja ou a comunidade cristã pode ser vista como imagem da Jerusalém celeste.
Um dístico medieval procura sintetizar os sentidos da Escritura: “Littera gesta docet, quid credas allegoria. Moralis quid agas, quo tendas anagogia.”, que significa “A letra ensina-te os fatos (passados); a alegoria, o que deves crer; a moral, o que deves fazer; a anagogia, para onde deves tender.”