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Incertezas jurídicas

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O Direito não é uma ciência exata, mas possui também seus axiomas. Nem tudo no Direito é controvertido, como se propala. Machado de Assis alude ao receio que atormentava Rubião de perder a herança que lhe deixara Quincas Borba, cujo testamento em favor do amigo estabelecia uma cláusula incomum: a de que cuidasse do seu cachorro, que tinha o mesmo nome do dono. O receio era o de que o cão fugisse e, assim, o herdeiro perdesse direito ao legado. De nada adiantava a palavra do advogado quanto à inexistência de disposição testamentária nesse sentido. Sempre lhe “ficava a dúvida, o exemplo de longas demandas, a variedade das opiniões jurídicas sobre uma só matéria”. A frase reflete o ceticismo do leigo, em geral, no que se refere à exatidão ou à coerência das sentenças.

Velho estudioso do direito, chego a compreender o temor de quantos pensam como Rubião, diante de decisões da nossa mais alta Corte de Justiça que parecem fugir aos parâmetros legais. No caso do magnata Elon Musk, por exemplo, cuja ação desabrida realmente precisava ser contida, o STF foi além do razoável, ao suspender o funcionamento da plataforma da internet (a “X”) de que é proprietário e ameaçar de sanções outra empresa do seu grupo econômico (a “Starlink”) que não era parte do processo, além de cominar multa antecipada a quem quer que tente forjar acesso à mencionada “X”. Ora, segundo o Código Civil, a pessoa jurídica não se confunde com os seus membros, gozando de autonomia patrimonial. E, de acordo com a lei processual, os efeitos da sentença se adstringem às partes entre as quais ela é dada, não prejudicando terceiros estranhos ao processo.

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Por outro lado, causa espécie a extensão que se tem dado à competência regimental da Corte para instaurar inquéritos relativamente a infrações ocorridas na sua sede ou em suas dependências. Estendida às infrações praticadas virtualmente – o que, em tese, se afigura legítimo -, essa competência passou a atrair para a jurisdição do Supremo processos de remota vinculação com o alvo de proteção do regimento (que são as atividades da Corte), os quais se enquadrariam melhor na órbita da justiça federal de primeiro grau, como previsto na Constituição. Foi o que aconteceu com os processos a que respondem mais de mil acusados de participar dos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023. Nesses, o condutor dos inquéritos é também relator das ações penais, ao mesmo tempo investigando, determinando diligências e julgando, de forma incompatível com o sistema acusatório, cuja característica está na separação entre as funções de acusar e julgar. Rubião, certamente, se assustaria com esse quadro cheio de incertezas da nossa Justiça.

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