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Um diálogo entre o livre-arbítrio e direito à interrupção da gravidez

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As discussões sobre o direito à interrupção da gravidez indesejada recrudesceram recentemente em nossa sociedade. Em apertada síntese, o movimento reacionário se pauta por impor na lei laica interpretações errantes de escrituras sagradas atemporais.

Interessante observar que diversas vozes apaixonadas e comumente vociferantes daquele movimento são masculinas, que é, indubitavelmente, o gênero ativo do estupro, que não só viola o corpo feminino, mas dilacera a própria alma da mulher. Por isso, o que pregam, conscientemente ou não, é a criminalização da vítima. É temerário perceber, também, que esses autoproclamados defensores da boa causa não titubeiam em acusar, julgar e sentenciar numa única frase as mulheres que optam pela interrupção da gravidez, mesmo nas condições em que há risco de vida e oriundo do nefasto estupro. Seja por falta de espaço em seus textos ou mesmo por condescendência misógina, é oportuno trazer a estes cavalheiros inquisidores a reflexão que Santo Agostinho revelou e fundamentou, uma essencial dádiva de Deus à humanidade: o livre-arbítrio.

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Em seus quase bimilenares textos, em especial “Sobre o Livre-Arbítrio” e “Cidade de Deus”, Santo Agostinho versa que “o mal não é coisa senão abandonar a instrução” e vincula a numinosa reflexão de “a Escritura Sagrada submete a inteligência a Deus… sendo ela a que modera as paixões e as coloca a serviço da justiça”. Logo, pode-se depreender que a composição da inteligência com o senso de justiça é aquela que nos afasta do mal no exercício do livre-arbítrio. Isto posto, estaríamos atendendo a providência divina ao condenar uma mulher que usa a inteligência – inclusive aquela oferecida pela ciência – para interromper a gravidez indesejada por motivações de sobrevivência, de desalento ou de justiça? É razoável que aqueles autoproclamados bastiões da salvação tenham o pretenso direito de suspender o livre-arbítrio oferecido por Deus à humanidade e, também, às mulheres? É justo que homens que se sentem “santos” e entoam as escrituras, de caligrafia masculina, mas com as consequências de desobediência, quase sempre, versem sobre as mulheres “profanas”?

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Em síntese, é lícito que religiosos e leigos defendam seus posicionamentos com base nas escrituras que consideram sagradas em seus ritos, inclusive com a alegação da danação, caso não haja obediência às suas crenças. Não obstante, o próprio Santo Agostinho tinha clareza na distinção entre os mundos terrestre e celestial: “a lei humana, que tem como única finalidade o governo dos povos, permite e deixa impune muitos atos que a divina Providência pune”. Por isso, quase 2 mil anos depois, advogo como tirana a vontade de impor no mundo laico convicções de origem metafísica de alguns sobre as escolhas de outrem, bem como injusto que se faça uma leitura obtusa de longevos textos ao arrepio da contemporaneidade, da inteligência, da razoabilidade e do senso de justiça que são elementos fundamentais nos permitem hastear a bandeira de uma sociedade solidária, justa e pacífica como, decerto, desejava Santo Agostinho.

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