“Meu corpo não é um corpo, é uma roupa que eu não posso trocar, arrumar… Posso?” As narrativas surpreendem e demarcam um campo legítimo de escuta e pesquisa diante de uma temática relativamente recente: a transexualidade. Compartilhamos uma revelação que eu, como discente do “Fala Trans” – ambulatório para atendimento psicanalítico ao público trans, da UFJF – transpasso nesse texto. Nessa experiência, os pacientes trazem seus sofrimentos, angústias e dúvidas, como essa que abre nosso relato.
Não atendo os pacientes. Sou uma estrangeira que, a partir de um diário clínico, registra o que desperta e impacta minha escuta. Não vejo os corpos, vejo sujeitos imersos em suas interpretações, interrogações e ideias de mundo.
Identificar-se como trans não é o principal motivo pela busca de tratamento. Todos já haviam começado algum processo de alteração física, troca de nome ou, até mesmo, cirurgia de designação quando chegaram ao CPA da UFJF. É possível destacar uma linha comum aos casos: uma dificuldade na aceitação familiar, no acolhimento social e no conflito em se reconhecer em uma imagem.
Na busca pelo nome social, percebemos, por exemplo, um sujeito à procura de um posicionamento. Um novo nome permite a localização de uma nova identidade. Mas não é suficiente. É preciso trocar as roupas, os trejeitos e até rever escolhas sexuais. Mesmo assim, permanece um questionamento infindável do que é ser homem ou mulher.
Experimentei em minhas anotações a sensação de estar perdida diante da pressa em identificar uma resposta. De quem falam? Tentativas vãs e inúteis de localizar esses “analisandos” de acordo com seus gêneros para, quem sabe, conseguir “enxergar” ou fazer uma construção imaginária de seus corpos. No trajeto da escuta, esse tipo de localização é o que menos importa.
Como aluna, mas não apenas, sou afetada pelo que ouço. Destaca-se uma vulnerabilidade de alguns pacientes sobre seus corpos e as transformações as quais vivenciam. O corpo aparece na impressionante dimensão de como as pessoas podem experimentar as angústias que sofrem, como nas automutilações, nas tentativas de suicídio, na dor da surra levada pelo preconceito e na discriminação de terceiros. Há um medo de passar pela mudança de sexo. “Não quero ser um monstro.” Mas um monstro para quem? Como ver e analisar a autodepreciação de um adolescente que escuta e repete “sou um lixo”?
O mal-estar vivenciado no corpo também aparece por meio da retirada das vivências sexuais, como uma paciente que fala em tomar remédio para brochar, perder a sensibilidade do órgão sexual ou até mutilá-lo. Falas como “o prazer pode acabar, eu não” apontam que a questão trans diz também da existência, do que se é para além de um corpo. Sem dispensá-lo.
“Meu corpo não é um corpo, é uma roupa que eu não posso trocar, arrumar… Posso?”, disse um paciente ao se interrogar sobre as mudanças que vem experimentando. Este, que ora se traveste de mulher, ora aparece como homem nas sessões. Outro interroga se isso não seria uma “futilidade”, uma “questão de estética”. Contudo, ainda na mesma sessão, coloca que “ou é isso ou dou um tiro na minha boca”. Sigo me perguntando de onde surgem essas certezas em meio a ideias tão vacilantes sobre os corpos, as imagens daqueles que escutamos.
Respondo a mim mesma que (quase) tudo é mutável nessa vida: nossa imagem, nosso grupo social. O que fica edificado parece ser nossas relações com os pais, nossas memórias de infância, a forma como nos posicionamos diante do outro. “Como vou fazer para sair do meu corpo?”, outro paciente se interroga. Complemento nas minhas reflexões: para sair de algum lugar, é preciso estar em algum lugar. “Por qual via passa essa necessidade de mudança?”, nos interroga a supervisora. Não sei. Para ser João é preciso deixar de ser Maria?
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