Dentro da quadra, eu sou uma pessoa; fora dela, eu sou outra. Na minha rotina de peladeiro, que vem de longe, de uma vez por semana, eu retenho essa frase, ou essa ideia. E ela está presente no ambiente da resenha pós-jogo, quando o grupo de amigos relaxa ao comentar os lances da partida de futebol: o gol perdido, o chute que pegou mal no pé, a defesa incrível do goleiro, a caneta, o lençol. Peças poéticas que só o futebol pode nos oferecer. E tome cerveja e mais tira-gosto.
Deixando de lado a metáfora futebolística, penso na minha rotina de uma pessoa que tem um familiar em casa com o diagnóstico da doença de Alzheimer. São dez anos de compartilhamento, desde o café da manhã ao adormecer — na repetição mecânica de sensações, as mais contraditórias possíveis: raiva, indignação, medo, angústia, insegurança. Tudo que comporte na alma humana.
Tenho aprendido muito da vida. Os sentimentos ficam agitados, desordenados, incongruentes. São lições doces e amargas que o sabor da vivência traz para toda a família, principalmente ao ente familiar que está junto ao cuidado permanente e a toda hora da mãe. Que não sabe mais que dia é hoje, se está de tarde ou de noite, que come compulsivamente, como quem literalmente está se despedindo do mundo. E que vive presa, há mais de 60 anos, agarrada à infância vivida no interior de Minas Gerais.
É duro participar dessa realidade. Invento alternativas e capricho na criatividade e em imaginações possíveis para proteger minha saúde mental. Dizer que é fácil… Não é. Há um adestramento emocional perverso, vindo da cabeça da pessoa idosa, que oprime a gente, de tanta repetição e marcação implacável de fazer inveja a Junior Baiano — ex-zagueiro do Flamengo — pelo mesmo assunto tantas vezes colocado.
Assim como não acredito nessa máxima, de que dentro de campo sou uma pessoa e fora dele sou outra, o fato de profissionalmente trabalhar com pessoas idosas não me protege de não sentir raiva, medo e desesperança e de conviver sempre bem com as agruras e os sofrimentos que todas as fases da vida trazem para todos nós, inclusive a velhice. Viver não é uma reta sempre certa. Viver é muito mais do que os nossos olhos enxergam. No cuidado à pessoa idosa com Alzheimer, o que nós precisamos é de apoio social e financeiro às famílias. Ambientes de conversa. Participação de mais gente nessa empreitada.
Não sei o que vai acontecer comigo. Enquanto isso, vou dando tratos à bola!